"Os musicais em Londres são inferiores aos meus"
Tem novo espectáculo no Casino Estoril e outros três a correr as salas do país. A figura de Salazar daria "não um musical, mas uma tragédia."
O encenador, aqui em frente ao Casino Estoril, é o modelo que todos os fotógrafos desejam: não se importa de experimentar cenários ou repetir poses. "Quem é actor durante 14 anos tem de tratar a câmara por tu", justifica.
A entrevista decorria de forma tranquila até lhe perguntarmos sobre a costureira que terá apresentado uma queixa de agressão contra ele. O encenador Filipe La Féria, 65 anos, subiu o tom de voz e enrouqueceu ainda mais. 3 minutos e 19 segundos depois, acalmou-se e pediu desculpa: "Fervo em pouca água. Discuto todos os dias. Mas berro e no minuto a seguir estou aos beijinhos." Não houve beijinhos, mas quase. Numa salinha do Casino Estoril, onde estreou em Julho o espectáculo "Fado, Histórias de Um Povo", visto já por 28 mil espectadores, retomámos a conversa com o homem que mais portugueses leva ao teatro. Dos tempos em que era actor e comia arroz com arroz aos espectáculos, que garante, sem falsas modéstias, só poderem ter "equivalente na América".
Em pequeno interessou-se por teatro sem nunca ter visto teatro. Como é que isso aconteceu?
Recortava as caricaturas que saíam na página 3 do "Diário de Notícias", colava-as em cartão para que se aguentassem em pé e montava teatros com caixas de sapatos. Nasci na zona raiana do Alentejo. Fiz lá a primária, a viver em casa de uma tia. Os meus pais ficaram em Lisboa, porque uma irmã minha morreu muito cedo e houve um grande luto na família. Essa paixão começou pela palavra, pelos livros. Acho que o teatro é sempre poesia materializada.
Para essas experiências com caixas de sapatos já escrevia as peças ou só montava os cenários?
Fazia tudo, como agora. Nesta última peça até experimentei escrever músicas.
O que lia em miúdo?
Lia de tudo, até livros impróprios para uma criança. Eça de Queiroz, Stendhal, Balzac, Zola... Naquela biblioteca até havia a "Comédia Humana" [de Balzac].
Eram livros da família?
Eram da biblioteca da minha avó, uma mulher muito culta. Aliás, era ela que me levava à ópera - daí talvez a minha paixão pelo musical.
O público conhece-o sobretudo pelos musicais, mas não fez só isso.
Fiz muito mais teatro de outro género do que musical. Estive no Conservatório, comecei a trabalhar muito cedo e passei por companhias extraordinárias como a Amélia Rey Colaço, a Cornucópia, a Casa da Comédia - que estava para ser vendida às testemunhas de Jeová e que dirigi durante 14 anos. Antes de entrar no teatro musical dizia-se que o público português não gostava de musicais. Todas as tentativas tinham sido um fracasso.
Criou uma escola de teatro musical?
Talvez. Se pensarmos que há actores que estão no West End e passaram por mim... Para o "Fado - História de Um Povo" fiz uma audição que foi transmitida na RTP e teve mais de mil candidatos.
Está tão ligado à encenação que é fácil esquecer que começou como actor.
Estive 14 anos só a trabalhar como actor mas já nessa altura sonhava escrever, fazer os cenários e os figurinos. Sempre tive a paixão pelo teatro total.
Era bom actor?
Tive prémios e bons papéis, como o Romeu do "Romeu e Julieta".
Era capaz de voltar?
Hoje em dia tenho uma vida tão obsessiva e preenchida... já não faz sentido.
O musical "Amália" esteve seis anos em cena, ultrapassou os 6 milhões de espectadores. Como explica o fenómeno?
Representa a figura que representa... A Amália é que teve a ideia, quando foi ver um espectáculo sobre a Maria Callas. "Então está a fazer um espectáculo sobre a Callas? Porque não faz um sobre mim?" Já estava em ensaios quando ela morreu.
Conhecia-a bem?
Quando a conheço já é uma mulher retirada, morta por dentro, porque não podia cantar. Era uma mulher entristecida, mas luminosa e com uma grande sabedoria.
Há jovens a assistir aos seus espectáculos? Há a ideia de que só os mais velhos vão em excursões ao Politeama.
É exactamente o contrário. Os espectadores da "Menina do Mar" ou do "Feiticeiro de Oz" ficam fãs do teatro musical. Começam a vir com a escola e depois obrigam os pais a ir. E são todos esses jovens que alimentam o Politeama ou o Rivoli.
Já descobriu muitos talentos?
Todos os grandes actores são descobertos por mim: de uma Maria Rueff a um João Baião ou a um Joaquim Monchique.
Há pessoas com quem se recusa a voltar a trabalhar?
Esqueço-me de tudo. Posso berrar mas não guardo rancor a ninguém. Um actor é um condenado da sensibilidade: temos o coração ao pé da boca, mas tudo passa.
Então é verdade que berra muito enquanto está a conduzir um espectáculo?
Às vezes de mais. Até tenho de ter cuidado, porque tenho problemas de saúde por causa disso. Sou muito exigente comigo e com os outros. O espectáculo tem de ser muito bom para o espectador querer voltar. E acho que os faço muito bons. O "Fado - História de Um Povo" só pode ter equivalente na América.
Nunca pensou em fazer um filme musical?
Não temos nem cinema, quanto mais musical. Vou morrer com a frustração de nunca ter feito um filme.
Afinal, depois das polémicas todas, o Rivoli é ou não é a sua casa?
A minha casa é o Politeama. O Rivoli está a ser uma experiência difícil. Lisboa já é uma cidade difícil para o teatro - em Agosto não há uma única sala de espectáculos aberta e ninguém se importa com isso. A cultura é sempre o parente pobre. Salazar tinha uma frase horrível que dizia que "a cultura era a casaca que se punha para receber as visitas".
Admira a figura de Salazar?
Não o admiro nada. Aquela coisa de sacristão de província... Dizer fascismo até já acho um elogio, parece uma coisa grandiosa. Só acho que ele é uma figura teatral que nunca foi explorada. Os italianos já fizeram peças sobre Mussolini.
Já pegou em Jesus Cristo. Porque não um musical sobre Salazar?
Musical não, mas uma tragédia...
Hoje já ninguém se lembra que o Politeama era um cinema de pornografia quando pegou nele.
Era esse e o Olímpia. Tiveram êxito até os vídeos os remeterem à falência. Peguei nesse cinema decadente e fiz dele o teatro mais querido do público de Lisboa e que é hoje o motor daquela rua. Antes era só prostitutas e toxicodependentes, hoje tem vida e restaurantes.
Como reage quando dizem que o teatro musical é baixa cultura?
Esse teatro é hoje o que era a ópera italiana no século xix. Ouve-se uma composição de Lloyd Weber e está-se a ouvir Puccini. Porque há-de ser um teatro menor se os seus actores têm de ser completos? O Ruy de Carvalho, por exemplo, é completo. Faz musical como faz o "Rei Lear".
Ainda sente esse preconceito?
As pessoas quando vão a Londres vão logo aos grandes musicais. E esses são inferiores aos meus, segundo os próprios autores. O Lloyd Weber, por exemplo, considerou o meu "Jesus Cristo Superstar" a melhor encenação que viu até hoje.
Voltando atrás, como é que os seus pais reagiram quando disse que queria seguir teatro?
Portugal antes do 25 de Abril era irrespirável. As pessoas eram muito complexadas. Quem ia para o teatro eram os vadios. "Escondam as patas que vêm aí os cómicos."
Tentaram impedi-lo?
Foram aceitando, mas era sempre um desgosto. Sabiam que não ia ter uma vida fácil: houve fases em que tive de comer arroz com arroz. É um oposto desta sociedade, em que as mães até empurram os filhos para fazer as figuras mais tristes na televisão. Havia o recato, agora há a loucura da exibição, um circo disparatado.
Os problemas de saúde deram-lhe mais consciência dessas limitações?
Tenho problemas há algum tempo - tenho olhos fracos, por exemplo. Quer se queira quer não, esses problemas dão-nos consciência da nossa grande fragilidade.
Aborrece-se quando imitam a sua voz?
Como actor, foi sempre a minha grande marca. Uma vez em Londres fui dizer que queria mudar a voz. Uma professora de canto ia-me batendo: "Está louco? Nunca mude, senão vai ficar igual aos outros."
Sempre teve a voz assim?
Nasci rouco. Era "o Rocco e os seus irmãos", como dizia Visconti.
Como recorda a aventura de Londres? Esteve lá três anos, com uma bolsa.
No final do mês a bolsa eram uns trocos. Trabalhava ao mesmo tempo, a servir à mesa num restaurante da King''s Road. Vivi os anos 70 nessa rua, mas ainda no outro dia dizia a uns amigos que, estando num mundo mais excêntrico, onde havia droga e toda a vida mais marginal, nunca me deu para isso. O mundo real nunca me atraiu.
Não vive num mundo real?
Invento outros mundos para não viver no real. Já em pequeno era assim: tinha dificuldade em aceitar que as personagens da "Madame Bovary" não eram reais.
Hipotecou bens por causa da Casa da Comédia?
Ai, hipotequei bens por causa de tudo! Pela Casa da Comédia, pelo Politeama. Na Casa da Comédia, eu e o António Cruz tínhamos um faqueiro que ia sempre para o prego para fazer os espectáculos.
Agora já não precisa de hipotecar bens?
Preciso pois.
Com salas lotadas não se ganha dinheiro?
Não se ganha dinheiro no teatro, porque há uma enorme despesa. Garanto que é um negócio que para enriquecer não serve. Nem Brecht enriqueceu.
Das coisas que hipotecou, há alguma que lhe tenha custado mais?
Hipotequei a vida pelo teatro. Ainda hoje tenho bens hipotecados. E talvez me possa arrepender. Se tivesse tido uma vida mais calma poderia ser mais feliz.
Já lhe aconteceu não pagar aos artistas?
Sempre paguei, mas atraso-me muito, às vezes meses. O que é dramático até para mim. Fico angustiado.
O que se passou com a costureira de um dos seus espectáculos [os jornais e as revistas noticiaram o mês passado que a costureira Helena Brandão, que trabalhava com o produtor desde 1999, terá apresentado na GNR uma queixa de agressão]?
Só uma discussão amigável. Todos os dias discuto! Com a D. Irene, com a Maria Ruivo, com a Alexandra. As pessoas estão desmotivadas. Só entro nessas discussões quando há incompetência. Uma pessoa que dá tudo também quer receber tudo.
Tem medo de envelhecer?
Acha que estou velho? Olho-me ao espelho e não acho nada. Tenho medo é da doença. E devia aprender que já não tenho idade para ferver em pouca água.
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por Sílvia Caneco, Publicado em 21 de Agosto de 2010
Tem novo espectáculo no Casino Estoril e outros três a correr as salas do país. A figura de Salazar daria "não um musical, mas uma tragédia."
O encenador, aqui em frente ao Casino Estoril, é o modelo que todos os fotógrafos desejam: não se importa de experimentar cenários ou repetir poses. "Quem é actor durante 14 anos tem de tratar a câmara por tu", justifica.
A entrevista decorria de forma tranquila até lhe perguntarmos sobre a costureira que terá apresentado uma queixa de agressão contra ele. O encenador Filipe La Féria, 65 anos, subiu o tom de voz e enrouqueceu ainda mais. 3 minutos e 19 segundos depois, acalmou-se e pediu desculpa: "Fervo em pouca água. Discuto todos os dias. Mas berro e no minuto a seguir estou aos beijinhos." Não houve beijinhos, mas quase. Numa salinha do Casino Estoril, onde estreou em Julho o espectáculo "Fado, Histórias de Um Povo", visto já por 28 mil espectadores, retomámos a conversa com o homem que mais portugueses leva ao teatro. Dos tempos em que era actor e comia arroz com arroz aos espectáculos, que garante, sem falsas modéstias, só poderem ter "equivalente na América".
Em pequeno interessou-se por teatro sem nunca ter visto teatro. Como é que isso aconteceu?
Recortava as caricaturas que saíam na página 3 do "Diário de Notícias", colava-as em cartão para que se aguentassem em pé e montava teatros com caixas de sapatos. Nasci na zona raiana do Alentejo. Fiz lá a primária, a viver em casa de uma tia. Os meus pais ficaram em Lisboa, porque uma irmã minha morreu muito cedo e houve um grande luto na família. Essa paixão começou pela palavra, pelos livros. Acho que o teatro é sempre poesia materializada.
Para essas experiências com caixas de sapatos já escrevia as peças ou só montava os cenários?
Fazia tudo, como agora. Nesta última peça até experimentei escrever músicas.
O que lia em miúdo?
Lia de tudo, até livros impróprios para uma criança. Eça de Queiroz, Stendhal, Balzac, Zola... Naquela biblioteca até havia a "Comédia Humana" [de Balzac].
Eram livros da família?
Eram da biblioteca da minha avó, uma mulher muito culta. Aliás, era ela que me levava à ópera - daí talvez a minha paixão pelo musical.
O público conhece-o sobretudo pelos musicais, mas não fez só isso.
Fiz muito mais teatro de outro género do que musical. Estive no Conservatório, comecei a trabalhar muito cedo e passei por companhias extraordinárias como a Amélia Rey Colaço, a Cornucópia, a Casa da Comédia - que estava para ser vendida às testemunhas de Jeová e que dirigi durante 14 anos. Antes de entrar no teatro musical dizia-se que o público português não gostava de musicais. Todas as tentativas tinham sido um fracasso.
Criou uma escola de teatro musical?
Talvez. Se pensarmos que há actores que estão no West End e passaram por mim... Para o "Fado - História de Um Povo" fiz uma audição que foi transmitida na RTP e teve mais de mil candidatos.
Está tão ligado à encenação que é fácil esquecer que começou como actor.
Estive 14 anos só a trabalhar como actor mas já nessa altura sonhava escrever, fazer os cenários e os figurinos. Sempre tive a paixão pelo teatro total.
Era bom actor?
Tive prémios e bons papéis, como o Romeu do "Romeu e Julieta".
Era capaz de voltar?
Hoje em dia tenho uma vida tão obsessiva e preenchida... já não faz sentido.
O musical "Amália" esteve seis anos em cena, ultrapassou os 6 milhões de espectadores. Como explica o fenómeno?
Representa a figura que representa... A Amália é que teve a ideia, quando foi ver um espectáculo sobre a Maria Callas. "Então está a fazer um espectáculo sobre a Callas? Porque não faz um sobre mim?" Já estava em ensaios quando ela morreu.
Conhecia-a bem?
Quando a conheço já é uma mulher retirada, morta por dentro, porque não podia cantar. Era uma mulher entristecida, mas luminosa e com uma grande sabedoria.
Há jovens a assistir aos seus espectáculos? Há a ideia de que só os mais velhos vão em excursões ao Politeama.
É exactamente o contrário. Os espectadores da "Menina do Mar" ou do "Feiticeiro de Oz" ficam fãs do teatro musical. Começam a vir com a escola e depois obrigam os pais a ir. E são todos esses jovens que alimentam o Politeama ou o Rivoli.
Já descobriu muitos talentos?
Todos os grandes actores são descobertos por mim: de uma Maria Rueff a um João Baião ou a um Joaquim Monchique.
Há pessoas com quem se recusa a voltar a trabalhar?
Esqueço-me de tudo. Posso berrar mas não guardo rancor a ninguém. Um actor é um condenado da sensibilidade: temos o coração ao pé da boca, mas tudo passa.
Então é verdade que berra muito enquanto está a conduzir um espectáculo?
Às vezes de mais. Até tenho de ter cuidado, porque tenho problemas de saúde por causa disso. Sou muito exigente comigo e com os outros. O espectáculo tem de ser muito bom para o espectador querer voltar. E acho que os faço muito bons. O "Fado - História de Um Povo" só pode ter equivalente na América.
Nunca pensou em fazer um filme musical?
Não temos nem cinema, quanto mais musical. Vou morrer com a frustração de nunca ter feito um filme.
Afinal, depois das polémicas todas, o Rivoli é ou não é a sua casa?
A minha casa é o Politeama. O Rivoli está a ser uma experiência difícil. Lisboa já é uma cidade difícil para o teatro - em Agosto não há uma única sala de espectáculos aberta e ninguém se importa com isso. A cultura é sempre o parente pobre. Salazar tinha uma frase horrível que dizia que "a cultura era a casaca que se punha para receber as visitas".
Admira a figura de Salazar?
Não o admiro nada. Aquela coisa de sacristão de província... Dizer fascismo até já acho um elogio, parece uma coisa grandiosa. Só acho que ele é uma figura teatral que nunca foi explorada. Os italianos já fizeram peças sobre Mussolini.
Já pegou em Jesus Cristo. Porque não um musical sobre Salazar?
Musical não, mas uma tragédia...
Hoje já ninguém se lembra que o Politeama era um cinema de pornografia quando pegou nele.
Era esse e o Olímpia. Tiveram êxito até os vídeos os remeterem à falência. Peguei nesse cinema decadente e fiz dele o teatro mais querido do público de Lisboa e que é hoje o motor daquela rua. Antes era só prostitutas e toxicodependentes, hoje tem vida e restaurantes.
Como reage quando dizem que o teatro musical é baixa cultura?
Esse teatro é hoje o que era a ópera italiana no século xix. Ouve-se uma composição de Lloyd Weber e está-se a ouvir Puccini. Porque há-de ser um teatro menor se os seus actores têm de ser completos? O Ruy de Carvalho, por exemplo, é completo. Faz musical como faz o "Rei Lear".
Ainda sente esse preconceito?
As pessoas quando vão a Londres vão logo aos grandes musicais. E esses são inferiores aos meus, segundo os próprios autores. O Lloyd Weber, por exemplo, considerou o meu "Jesus Cristo Superstar" a melhor encenação que viu até hoje.
Voltando atrás, como é que os seus pais reagiram quando disse que queria seguir teatro?
Portugal antes do 25 de Abril era irrespirável. As pessoas eram muito complexadas. Quem ia para o teatro eram os vadios. "Escondam as patas que vêm aí os cómicos."
Tentaram impedi-lo?
Foram aceitando, mas era sempre um desgosto. Sabiam que não ia ter uma vida fácil: houve fases em que tive de comer arroz com arroz. É um oposto desta sociedade, em que as mães até empurram os filhos para fazer as figuras mais tristes na televisão. Havia o recato, agora há a loucura da exibição, um circo disparatado.
Os problemas de saúde deram-lhe mais consciência dessas limitações?
Tenho problemas há algum tempo - tenho olhos fracos, por exemplo. Quer se queira quer não, esses problemas dão-nos consciência da nossa grande fragilidade.
Aborrece-se quando imitam a sua voz?
Como actor, foi sempre a minha grande marca. Uma vez em Londres fui dizer que queria mudar a voz. Uma professora de canto ia-me batendo: "Está louco? Nunca mude, senão vai ficar igual aos outros."
Sempre teve a voz assim?
Nasci rouco. Era "o Rocco e os seus irmãos", como dizia Visconti.
Como recorda a aventura de Londres? Esteve lá três anos, com uma bolsa.
No final do mês a bolsa eram uns trocos. Trabalhava ao mesmo tempo, a servir à mesa num restaurante da King''s Road. Vivi os anos 70 nessa rua, mas ainda no outro dia dizia a uns amigos que, estando num mundo mais excêntrico, onde havia droga e toda a vida mais marginal, nunca me deu para isso. O mundo real nunca me atraiu.
Não vive num mundo real?
Invento outros mundos para não viver no real. Já em pequeno era assim: tinha dificuldade em aceitar que as personagens da "Madame Bovary" não eram reais.
Hipotecou bens por causa da Casa da Comédia?
Ai, hipotequei bens por causa de tudo! Pela Casa da Comédia, pelo Politeama. Na Casa da Comédia, eu e o António Cruz tínhamos um faqueiro que ia sempre para o prego para fazer os espectáculos.
Agora já não precisa de hipotecar bens?
Preciso pois.
Com salas lotadas não se ganha dinheiro?
Não se ganha dinheiro no teatro, porque há uma enorme despesa. Garanto que é um negócio que para enriquecer não serve. Nem Brecht enriqueceu.
Das coisas que hipotecou, há alguma que lhe tenha custado mais?
Hipotequei a vida pelo teatro. Ainda hoje tenho bens hipotecados. E talvez me possa arrepender. Se tivesse tido uma vida mais calma poderia ser mais feliz.
Já lhe aconteceu não pagar aos artistas?
Sempre paguei, mas atraso-me muito, às vezes meses. O que é dramático até para mim. Fico angustiado.
O que se passou com a costureira de um dos seus espectáculos [os jornais e as revistas noticiaram o mês passado que a costureira Helena Brandão, que trabalhava com o produtor desde 1999, terá apresentado na GNR uma queixa de agressão]?
Só uma discussão amigável. Todos os dias discuto! Com a D. Irene, com a Maria Ruivo, com a Alexandra. As pessoas estão desmotivadas. Só entro nessas discussões quando há incompetência. Uma pessoa que dá tudo também quer receber tudo.
Tem medo de envelhecer?
Acha que estou velho? Olho-me ao espelho e não acho nada. Tenho medo é da doença. E devia aprender que já não tenho idade para ferver em pouca água.
I ONLINE
por Sílvia Caneco, Publicado em 21 de Agosto de 2010
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