Thursday 16 December 2010

ENTREVISTA COM FELÍCIA CABRITA



Felícia Cabrita, jornalista de investigação - O caso Casa Pia abriu os olhos a muita gente

Costuma dizer que lida com o lado mais obscuro da sociedade, mas que não tem medo. Nesta entrevista, a jornalista que colocou a descoberto o maior caso de pedofilia registado em Portugal, explica o que sentiu quando percebeu a dimensão do escândalo na Casa Pia e coloca o dedo na ferida das ligações pouco claras entre o poder e os interesses da finança

Textos: Jacinto Silva Duro Fotos: Ricardo Graça

Como é possível que, na Casa Pia, mesmo com denúncias internas, só depois de os abusos terem sido denunciados no Expresso é que a justiça actuou?

Não houve muitas denúncias. O professor Américo tinha feito uma denúncia com o Bibi como visado. Teresa Costa Macedo, cujo julgamento começou na segunda-feira, também tinha denunciado. Em 1982, era ela que estava no colégio quando crianças desapareceram e se começou a falar de Carlos Cruz e Jorge Ritto. As crianças faziam denúncias ao professor Américo e havia lá dentro quem se batesse por elas, mas não havia a noção da existência de uma rede... mas havia já o suficiente. Durante a minha investigação, consegui encontrar, datado de 2001, um relatório do SIS [Serviços de Informação e Segurança] bastante aprofundado acerca da existência da pedofilia. Aqueles serviços do Estado sabiam, mas abafavam.

O que sentiu quando olhou para esses dados e se apercebeu da sua importância?

Foi uma investigação que sofreu uma evolução. Quando a denúncia parte, é apenas acerca do Carlos Silvino [Bibi]. Mês e meio depois, eu já tinha a noção da existência da rede. Começou por ser uma denúncia de uma pessoa e de repente apercebi-me que era uma escândalo que envolvia uma instituição do Estado, que essa pessoa servia de angariador para muitas outras e que os miúdos eram filmados dentro de colónias de férias da Casa Pia. Uma pessoa fica atónita e tem de perguntar: o que é isto? Imaginar como tudo se foi perpetuando no tempo, dentro daquelas quatro paredes e não se travou. E era óbvio que muita gente sabia...

Perante isto, podemos confiar no sistema judicial?
Depende. Neste caso, foi quase preciso que o céu nos caísse em cima para que as pessoas começassem a olhar. Felizmente, abriu os olhos a muita gente, mesmo dentro do aparelho judicial, para o que antes não se fazia... Por exemplo, quando o Rui Pedro desapareceu, os pais apresentaram queixa e a atitude foi: “ele foi passear”. Foi fatal. As primeiras 24 horas são fundamentais para o êxito de uma investigação. Houve mudanças, mas isso não quer dizer que deixou de haver “fruta podre” em vários sítios. Este foi um marco que abriu os olhos a professores, educadores, instituições para os sinais que as crianças vítimas de abusos apresentam.

Somos um povo de brandos costumes?

Não somos de todo. Basta lembrar o que foi a guerra colonial e os massacres que lá aconteceram... Na Idade Média, quando a Santa Inquisição queimava pessoas, o povo ia com banquinhos assistir, e se nos lembrarmos como tratávamos outras raças, como os ciganos que eram apedrejados mal entravam numa aldeia... Não podemos considerar que somos um povo de brandos costumes. Mas também temos e tivemos gente destemida, embora pouca... Costumo dizer que a única revolução popular que existiu em Portugal foi a de 1385. Não sei o que foi feito dessa coragem. Talvez se tenha perdido com a ditadura de Salazar. Talvez o medo se tenha colado à pele dos portugueses, contudo, 36 anos depois da revolução e com tanta promessa de educar o povo, está tudo na mesma. Às vezes, passo por sítios do Portugal profundo e as pessoas continuam com medo. Em vários trabalhos notei um enorme receio de falar dos presidentes de câmara. Como diz Alexandre O’Neal: “o medo vai ter tudo”... Vamos deixar de ter medo? Ou largamos o medo, ou ficamos completamente congelados por ele. A sociedade actual anda bastante congelada.

“A imprensa está muito politizada e instrumentalizada pelo poder político”
Com os media a cortar nos custos, como se tem verificado nos últimos anos, o jornalismo de investigação tem futuro?

Há já algum tempo que está a passar por um mau momento, mas não tem a ver apenas com o facto de não haver dinheiro. Além da crise, que obviamente se vai acentuar, já há muito que se sente, não por mim, porque sempre tive a sorte de ter condições para fazer jornalismo de investigação. Tenho visto muito colegas a “desaparecer” e a deixar de praticar esse tipo de jornalismo. Quando iniciei a minha carreira, havia muita gente em Portugal a fazer bom jornalismo de investigação... Por vezes, vou ao estrangeiro e preciso de ajuda de outros jornais. Fico abismada com o pouco jornalismo de investigação que se pratica lá fora e não estou a falar dos Estados Unidos, mas da Europa. É verdade que muitos dos nossos jornalistas começaram no Expresso e, mais tarde houve saída de gente para formar jornais como o Público. Além disso o “tecido das redacções” vai-se esfrangalhando, por várias razões... É talvez por isso que não há hoje uma imprensa combativa.

O que falta? Nos telegramas revelados pelo Wikileaks pode ler-se que Cavaco Silva entende que a imprensa portuguesa é muito “branda”.

A leitura é dele, mas é provavelmente correcta. Os jornalistas estão a renunciar ao seu papel. A própria classe aceitou este comportamento como natural, sobretudo nos últimos cinco anos. Nem considero já que se trate de medo, mas de oportunismo. A imprensa está muito politizada e instrumentalizada pelo poder político. E isso é o mais grave que pode acontecer a uma classe. Se nós, os mais velhos, não dermos o exemplo aos mais novos, tudo fica bloqueado e compromete o nosso trabalho. O meu jornal [semanário SOL], que tem marcado o quotidiano com grandes notícias e investigações – como o caso Freeport, Face oculta, entre outros - tem sido alvo de processos judiciais que nos tentam liquidar financeiramente e não há resposta da classe a estes ataques. Não se une para a defesa de um jornal. Aí se vê o terror... e há outras coisas. O objectivo é eliminar a concorrência e isso faz-se com uma grande facilidade e brutalidade. A profissão não se discute e não há união entre jornalistas. O jornalismo está moribundo em Portugal. Ainda vamos ter de esperar para voltar a ver o que havia na década de 80.

O público prefere mais o infotainement (entretenimento informativo) do que a informação?

Se soubermos dar um bom produto ao público ele saberá o que esperar no futuro. Esse é um dos esforços que faço: contar uma história, por mais maçuda que seja a matéria, e atrair o público. Quando passava a Grande Reportagem na SIC, havia reportagens de uma hora e tínhamos uma audiência brutal. A “guerra” entre as televisões, com o aparecimento dos canais privados, levou à vulgarização do jornalismo e ao aparecimento de algo com maiores semelhanças com telenovelas. A TVI apareceu com o Big Brother e com informação mais “levezinha” e o que é certo é que conseguiu afirmar-se. E o resto foi por arrasto.

“Não queria ser rato de biblioteca”

“Rato de biblioteca” era algo que não queria ser e foi por isso que, depois do Curso de Línguas e Literaturas Modernas, se dedicou ao jornalismo. Aos 17 anos já tinha tido experiências no meio e sabia que era ali que se sentia bem. Felícia Cabrita trocou o Algarve natal, onde nasceu há 47 anos, por Lisboa e dedicou-se ao “jornalismo de investigação”, um estilo que, por demorar tempo a conseguir resultados – não obstante a sua normal espectacularidade e importância -, tem vindo a ser abandonado pelos media. Uma profissão que envolve riscos e uma capacidade de “desenrascanço” fenomenal, pouco própria para cardíacos. É a Felícia Cabrita que se deve a exposição do caso de pedofilia na Casa Pia, ou dos contornos pouco claros em que o Freeport de Alcochete foi construído ou ainda do Caso Face Oculta. Amada por uns e muito pouco apreciada por outros, Felícia é jornalista do semanário SOL, mas já trabalhou para o jornal Expresso, revista Grande Reportagem ou para a SIC. É autora da obra Amores de Salazar e co-autora da biografia Pinto da Costa, entre outras personalidades. Actualmente, está a preparar uma biografia de Pedro Passos Coelho, que deverá ser editada em Fevereiro de 2011. n

“Ameaçaram a minha filha”

Quem manda realmente no País?

O poder faz-se de alianças. Nunca está sozinho. E temos visto que há uma grande promiscuidade entre o poder político e os banqueiros. Veja o caso do BPN ou da Face Oculta, onde se percebe como era a relação entre ambos, para conseguir dinheiro para os “amigos” ou para investimentos que se pretendia fazer na comunicação social. O poder não vive sozinho. Vive graças aos mais fortes. Não estou a dizer que tenha de ser assim, mas é o que tem estado a acontecer. Ainda a semana passada escrevi sobre o SIED [Serviço de Informações Estratégicas de Defesa] e essa promiscuidade que existia ao nível de “empresas públicas” onde o Estado tem apenas 10 ou 20% do capital e o resto é privado e está na mão de estrangeiros. Temos a nossa polícia secreta, que foi criada para o bem da Nação, a passar informação privilegiada. E isso também acontece com os bancos. Onde fica a democracia no meio disto tudo? É apenas uma palavra para colocar muitas rendas de bilros.

Durante as suas investigações sofre muita pressão e ameaças. Como lida com isso?
Já fiz muitos trabalhos complicados ao longo da minha carreira. Na Casa Pia, fui mesmo vítima de uma tentativa de atropelamento. Se não tivesse pulado na hora certa, tinham-me passado a ferro. Isso não me preocupa. Costumo dizer que sou um pouco inconsciente. Vou para cima das coisas sem medo e nunca me ocorre o que possa acontecer. Sou muitas vezes meia bola e força. Mas o pior para o jornalista é quando começam a ameaçar o jornal para onde trabalha. Por exemplo, as ameaças no caso Freeport partiram directamente do Governo para directores do SOL. Disseram: “mais uma notícia e liquidamo-vos financeiramente”. E continuam a tentar. Agora na Face Oculta, aconteceu através de processos cíveis. Estávamos habituados a processos por difamação que nos davam outra margem de manobra... percebe-se que o que querem é o dinheiro.

Alguma vez ameaçaram a sua família?

No início da investigação na Casa Pia ameaçaram a minha filha... Ganhei muitos inimigos. Fico feliz pois isso aconteceu numa sociedade muito cobarde, onde muita gente serve de tapete para subir na vida e onde não há valores. Fico feliz por ter muitos inimigos e também muitos amigos. Medo? Nunca.

Como avalia o trabalho feito pela defesa dos alunos da Casa Pia?

O primeiro advogado dos alunos da Casa Pia chamava-se Proença de Carvalho. É uma pessoa sobejamente conhecida... da nata do País. Nunca achei boa ideia o nome dele estar ligado ao Processo da Casa Pia e não tenho dúvidas do papel que ele teve no caso. Em escutas a que tivemos acesso e onde eu era alvo de “grandes elogios”, da parte dele, Proença de Carvalho marcava conversas com um dos suspeitos, utilizando código. Era óbvio que ele estava a passar informações aos arguidos que tinha obtido dos miúdos. E ele não foi caso único. Houve advogados que estiveram no processo por vingança pessoal e com alvos direccionados. A única pessoa que sei que se portou bem neste processo chama-se Miguel Matias. Um advogado novato que levou, com êxito, o trabalho até ao fim... No caso da acusação, como não acredito em “passarinhos”, tenho muita dificuldade em acreditar que um homem tão inteligente como Sá Fernandes, advogado de Carlos Cruz, acredite na sua inocência e passe a vida a ser enganado. Ou estamos a falar de um homem sem capacidade alguma para desempenhar a profissão ou que se engana com muita facilidade. Venha o Diabo e escolha.n

“Vivo um dia de cada vez”

É a autora de vários livros e biografias de personalidades como a de Valentim Loureiro ou Salazar. Qual foi a mais fascinante?

A mais fascinante não foi a de um político. Claro que a de Valentim Loureiro foi muito difícil, teve tantas peripécias e até ameaças, que me deu um gozo enorme vencer obstáculos. Por exemplo, andei por vários tribunais para conseguir encontrar o chamado Processo das Batatas que lhe valeu a saída do Exército. Mas o que me deu ainda mais “gozo”, pela dificuldade, foi a biografia sobre Sita Valles, uma jovem angolana que veio estudar para Portugal, foi a número dois da União dos Estudantes Comunistas e que, depois da revolução de 1974, achou que os objectivos tinham falhado e voltou para Angola, onde acabaria por ser fuzilada por ordem do poeta Agostinho Neto, em 1977. Ela e mais 30 mil. Encontrei em documentos secretos a assinatura de Agostinho Neto, o poeta, dando a ordem e isso para mim fez desabar um mito.

Como é o seu dia-a-dia?

Vivo um dia de cada vez. O jornalismo de investigação lida com o lado mais obscuro da sociedade, o que me obriga a fazer uma desintoxicação. Sou uma pessoa muito caseira. É um bocado como fazem os alcoólicos inteligentes, como o escritor surrealista Luíz Pacheco. Ele tinha a noção do seu alcoolismo e de vez em quando, internava-se e fazia umas curas... E eu tenho de fazer essas “curas”. O dia--a-dia é uma batalha em termos profissionais e tento adoçá-lo com a minha filha e com uma cadela.

2010-12-16

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