Friday 10 December 2010

OS MILIONÁRIOS DE SALAZAR



Livro de Pedro Jorge Castro com base no espólio de cartas privadas da alta finança ao ditador revela um cordão umbilical a nu.

Jorge Nascimento Rodrigues (www.expresso.pt)
17:35 Segunda feira, 23 de Novembro de 2009


O ditador com Ricardo Espírito Santo

BES -Centro de História

"Porque se mantém o Governo numa posição de favorecimento da burguesia capitalista", interrogava-se Marcello Caetano numa carta de denúncia de um rol de escândalos, enviada ao ditador António de Oliveira Salazar em 1944. Uma linguagem que poderia parecer decalcada, em algumas frases retiradas do contexto, do "Avante!" clandestino que, naquele ano, falaria das duras e muito reprimidas greves de Maio.

A burguesia a que se referia Caetano, então ministro das Colónias, era a alta camada monopolista e financeira. Esta classe começara a consolidar-se sob o regaço do novo regime, protegida da concorrência nacional e estrangeira pelo célebre condicionamento industrial (estabelecido em 1931), encontrando recursos baratos e até mercado cativo no império colonial (cuja conservação era o principal objectivo geopolítico do Estado Novo) e vivendo estreitamente das boas graças no relacionamento pessoal ou, via terceiros, com Oliveira Salazar. A quem não poucas vezes pediam a sua "alta intervenção" e se lhe dirigiam, com alguma intimidade, como "meu querido amigo".

A história do relacionamento com o Estado Novo desta burguesia capitalista que "confrangia" Caetano, é o pano de fundo das mais de 400 páginas de "Salazar e os Milionários", a lançar dia 26 pela editora Quetzal. A obra, escrita por Pedro Jorge Castro, jornalista da revista "Sábado", é um aprofundamento da investigação que publicou naquela revista desde Abril deste ano.

O livro, repleto de detalhes saídos de uma pesquisa própria em diversos arquivos e baseada em leituras do que se publicou depois de 1974 sobre o ditador e a ditadura, dá de Salazar uma imagem bem real e, por vezes, patética: um político agarrado às suas botinhas de pelica; que comia canja oferecida por uma dona de pensão; que regateava orçamentos de fornecedores; que apadrinhava o negócio das capoeiras e horta nos jardins do Palácio de São Bento gerido pela sua governanta; que nunca, enquanto presidente do Conselho, foi mais além do que a fronteira, embevecendo-se com as histórias contadas pelas namoradas ou pelos seus amigos milionários, olhando o mundo através dessas "viagens formidáveis" e dos postaizinhos de correio que lhe mandavam, como anotava meticulosamente no seu diário.

Esta imagem de um rural beirão de Santa Comba na capital do império contrastava com a realidade económica de alta concentração financeira de um país onde, nos anos 1950, apenas 34 empresas detinham mais de 40% do capital social. No final da sua obra de gestão económica do país, já depois de cair da cadeira de lona (ou na banheira) no Forte do Estoril em Setembro de 1968, apenas 10 famílias dominavam 50% da riqueza nacional em 1970, sublinha Pedro Jorge Castro.

Uma relação íntima

Uma das famílias da alta finança que recebe destaque neste livro é a dos banqueiros Espírito Santo, que ocupa a segunda parte com quase 100 páginas. Ricardo Espírito Santo e Silva (na foto com Salazar) assumira a direcção do Banco da família (o BESCL) em 1932, justamente no ano em que o ditador passaria a presidente do Conselho de Ministros. Liderava o maior grupo financeiro da época e tinha o privilégio de ser um amigo muito especial de Salazar. Sobre as outras famílias milionárias do regime, o livro escolhe mais onze (Alfredo da Silva/Mello, Champalimaud, Cupertino de Miranda, Queiroz Pereira, Manuel Bulhosa, Medeiros e Almeida, Delfim Ferreira, Moniz da Maia, Miguel Quina, Fino e, por fim, Sousa e Holstein Beck). Todos eles se esmeravam em cartas para o ditador que o livro compila em anexos documentais que dão bem a imagem do cordão umbilical entre o poder político e o económico e financeiro.

Um complemento interessante teria sido enquadrar os negócios e iniciativas destes milionários no processo evolutivo, por vezes em ziguezague, da estratégia económica da ditadura: desde o Acto Colonial, às negociações do Plano Marshall, à tentativa de política industrial sistemática de Ferreira Dias (secretário de Estado do Comércio e Indústria e depois ministro da Economia) para evitar que o país continuasse a ser "uma horta", até à adesão à EFTA, confirmando a guinada para a Europa.

Disseram

"Deixa-se por exemplo criar a convicção de que quem põe e dispõe nos bastidores são os homens de negócios, os homens do dinheiro"

Marcello Caetano, ministro das Colónias e presidente da Comissão Executiva da União Nacional, carta enviada a Salazar, 25/1/1944

"Tenho muita pena de não ir aí hoje, a nossa conversa dominical é para mim o maior prazer da semana, mas obedeço na esperança de que serei compensado"
Ricardo Espírito Santo e Silva, presidente do BESCL, carta enviada a Salazar, 1951

"O senhor professor tinha muito medo dos empresários que queriam mudar tudo a correr"

Maria de Jesus Freire, governanta de Salazar

"Aquilo tinha de ser tudo ao ritmo dele, das conjecturas que lhe iam na cabeça, da sua visão global"

António Champalimaud, industrial, opinando sobre Salazar


Texto publicado na edição do Expresso de 21 de Novembro de 2009

http://aeiou.expresso.pt/os-milionarios-de-salazar=f549055

QUEM FOI CHAMPALIMAUD?


No dia em que a República faz 100 anos, Cavaco Silva passa a tarde a falar na Fundação Champalimaud. O gesto é cheio de significado: apesar de muitos conflitos, Champalimaud foi um protegido dos governos da ditadura e da democracia. Era o homem mais rico de Portugal na queda do Estado Novo e voltou a sê-lo no fim da vida, beneficiando do processo de privatizações. A 5 de Outubro, sob o signo de Champalimaud, Cavaco escolhe celebrar a República do capital.

Artigo 4 Outubro, 2010 - 01:11 Por Jorge Costa

António Champalimaud – foto de Alfredo Cunha/Lusa (arquivo)
Nascido em 1918, Champalimaud perde o pai aos 19 anos. Carlos Champalimaud era membro do Conselho Fiscal do Banco Comercial, importador de ferro e aço pela sua Companhia Geral de Construções e, depois de casar com uma filha de Henrique Sommer, tornou-se proprietário da Quinta da Marinha, de algumas quintas no Douro, de roças em São Tomé e de minas de cobre no nordeste de Angola. Mas a situação financeira da família Champalimaud é complexa, com dívidas ao seu banco que ascendem a 13 mil contos, no seguimento do embargo da linha de caminhos-de-ferro Luanda-Ambaca, em cuja construção esteve envolvido. O filho primogénito, António, lançou-se cedo nos negócios e recebe mesmo um primeiro empurrão com o crédito do banqueiro Ricardo Espírito Santo (Pedro Jorge Castro, Salazar e os Milionários, 2009).

E tinha pressa. Aos 24 anos, António passa a fazer parte da administração da Empresa Cimentos de Leiria (ECL), do seu tio Henrique Sommer. Os Sommer eram descendentes de Henry, Barão de Sommer, alemão imigrado em Portugal, e dedicavam-se ao cimento e ao ferro: a família fundara em 1920 os Cimentos de Leiria e três anos depois introduzira no país a técnica do cimento Portland. Em 1935, comprara os Cimentos Tejo, passando a dominar o mercado nacional. Era também dono de interesses no algodão, metalomecânica e calçado, numa estratégia de diversificação que viria a ser o padrão dos principais grupos portugueses. Quando morre, em 1944, Henrique deixa ao sobrinho, António Champalimaud, a herança que será o início da sua fortuna.

Já presidente dos Cimentos de Leiria, Champalimaud posiciona-se para uma rápida acumulação. 1944 é também o ano do seu casamento com Cristina de Mello, filha de Manuel de Mello, neta de Alfredo da Silva. O sogro convida-o para dirigir a empresa de navegação do grupo, a Sociedade Geral, e garante-lhe o crédito da Casa José Henriques Totta, o banco da CUF. António quer comprar ao BNU a fábrica de cimentos da Matola, perto de Lourenço Marques, e move influências: o sogro pede a Salazar a preferência para o genro e Champalimaud consegue-a através do secretário pessoal do ditador, Alexandre Ribeiro da Cunha, seu amigo.

Caso Sommer: protecção e perseguição?

Em 1944, Champalimaud defronta-se com a oposição dos outros accionistas da Cimentos de Leiria, que não concordam com a compra da Matola. Champalimaud pede então às tias as suas acções da ECL como penhor de um novo empréstimo do Totta. Entre a declaração testamentária do tio Henrique, que beneficiaria os sobrinhos, e uma carta posterior, a favor das irmãs, era na posse destas que estavam as acções dos Cimentos. Este imbróglio sucessório estará na origem do «caso Sommer». Contudo, o empresário começa uma carreira sob protecção: em 1949, para a instalação da Companhia de Cimentos de Angola, a ECL recebe empréstimos avultados da Caixa Geral de Depósitos (120 mil contos, a uma taxa de 2,5% a 20 anos), favor tanto maior quanto a CGD estava inibida de emprestar para os investimentos nas colónias. O BNU também empresta cerca de 30 mil contos. Enquanto as condições da futura guerra se vão desenhando, Champalimaud é dos que apela ao «rápido incremento da ocupação europeia, principalmente nas áreas mais longínquas e de menor densidade económica». Para Champalimaud, não há nada a temer: «Não faltam o ânimo e a fé na continuidade sagrada dum Moçambique português». Vão seguir-se novas fábricas no Lobito (Angola), Dondo e Nacala (Moçambique).

A operação inaugural com as acções das tias está na origem de um processo judicial que excitou a imprensa ao longo de anos e criou dificuldades a Champalimaud. O «caso Sommer» começa em Março de 1957 e envolve duas acusações contra o empresário dos cimentos: a primeira é a do desvio de cerca de 10% da ECL deixados pelo tio Henrique Sommer aos cinco sobrinhos. Quando os co-herdeiros pediram a sua restituição, já Champalimaud as tem penhoradas e recusa a devolução, afirmando que pertencem às suas tias. A segunda acusação, de abuso de confiança, resulta da compra de acções da ECL pela Transformal, que depois as transferiu para a Companhia de Cimentos de Moçambique, ambas detidas por António Champalimaud.

A partir de 1957, os processos cíveis entre as duas partes são mais de 30 e as sessões em tribunal quase 400, envolvendo as partilhas de várias empresas da família. Em Março de 1959, os irmãos Carlos, Henrique e Maria Ana apresentam queixa contra António na Judiciária, que inicia as investigações e conclui pela sua inocência. Entretanto, inicia-se um processo paralelo: em Novembro de 1960, António Champalimaud apresenta queixa, em nome da Transformal, contra o seu antigo gerente, o seu irmão Henrique, acusando-o de desfalque e burla. O processo levará Henrique à prisão durante alguns meses em 1969. Mas, numa reversão do processo, António Champalimaud tem conhecimento em Fevereiro desse ano da existência de um mandato de captura contra si no âmbito deste caso. A PIDE vigia o seu barco e o seu avião. Parte então para o Alentejo com a filha, de onde o genro Luís Lino o conduzirá, em avioneta, até Madrid. Aí se encontra com Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar, para se aconselhar sobre os países com condições de extradição mais convenientes.

Apesar da censura, o noticiário do Caso Sommer populariza o tema dos rendimentos e privilégios das altas figuras do regime. No seu livro Depoimento, Marcelo Caetano deplora o «ambiente público desfavorável ao capitalismo», devido ao «escândalo levantado, à inépcia do juiz presidente e à demagogia dos advogados». Pela defesa de Champalimaud desfila uma série de advogados oposicionistas, que conferem ao processo uma carga política incómoda: o jovem Proença de Carvalho, Manuel João da Palma Carlos (ambos expulsos pelo juiz em pleno processo), Salgado Zenha, que passa a basear a defesa em argumentos abertos de perseguição política, sugerindo que o regime se serve para isso de um «louco», o irmão de António Champalimaud. Em 1973, Champalimaud é absolvido e regressa de Acapulco, no México, onde se refugiara durante cinco anos.

Um cheque do BPSM

Nos anos sessenta, a banca vive um período de falta de liquidez a que responde com a expansão das redes de balcões para captar depósitos a prazo. Champalimaud não olha a meios para avançar no seu desenvolvimento como grupo financeiro. Partindo da indústria, sempre teve o apoio da finança e conhece a sua importância: «No país não há nem haverá nunca um mercado de capitais à altura de satisfazer as necessidades da indústria. (…) O auto-financiamento representa um papel primordial, indispensável à vida e ao crescimento das empresas» (Champalimaud, citado in Maria Fernanda Rollo, História da Siderurgia, 2005).

Depois de tentar, sem sucesso, comprar a União, pequena seguradora dos Espírito Santo, vira-se em 1960 para a Confiança, do Porto, propriedade de Manuel Henriques Júnior, industrial resineiro e dono de 80% do Banco Pinto e Sotto Mayor. Henriques Júnior só aceita vender a Confiança se Champalimaud comprar também o banco. Depois de concentrar depósitos no BPSM, Champalimaud avança: «Não regateei a quantia, mandei vir um cheque avulso e preenchi-o logo ali, sacando sobre a minha conta e fechando assim o negócio. Fiquei só a dever, para pagar daí a trinta dias, uma percentagem pequena» (Exame, Junho 2004). O mesmo relato foi feito por outras palavras: a conta de Champalimaud não cobria a operação, mas quando o cheque careca chegou à administração, já Champalimaud era o presidente (Público, 09.05.2004).

É já o tempo da guerra: «o grande volume de capitais próprios que o BPSM leva para o Ultramar é uma homenagem expressiva aos que se batem nas frentes de batalha e no campo da produção para manter em África o homem português» (citado por Ana Paula Pires, Memórias da Siderurgia Nacional, 2005). Além do cimento, Champalimaud ganha o monopólio da produção de ferro e aço nas colónias. Em 1973, funda o Commercial Bank of Malawi, de que detém 60%. O Estado português, através do Instituto de Crédito de Moçambique, tem outros 20% do banco. As portas para o negócio tinham sido abertas, junto do ditador do Malawi, por Jorge Jardim, homem de negócios e agente de Salazar, que fez do Malawi um protectorado luso-sul-africano hostil aos movimentos de libertação e, em particular, à Frelimo. Durante a guerra em Moçambique, Jardim organiza grupos armados de colonos, que retaliam sobre a população local.

Mais tarde, com o 25 de Abril, Jardim refugia-se na embaixada do Malawi em Lisboa, de onde vem a fugir iludindo a vigilância policial em Junho de 1974, em direcção àquele país. Mais tarde, como veremos, estará em Madrid a organizar os grupos bombistas de extrema-direita que serão responsáveis por ataques contra a esquerda e por várias mortes.

A compra do Banco Português do Atlântico

Na sua expansão como grupo financeiro, Champalimaud faz, em 1965, a primeira tentativa de compra do BPA. A intenção torna-se rumor e chega mesmo à imprensa. Os genros de Cupertino de Miranda e administradores do banco, João Meireles e Alberto Pires de Lima, inviabilizam o negócio. Champalimaud, único accionista do BPSM, ficaria com o controlo da nova instituição que poderia resultar da fusão deste banco com o BPA, detendo assim 18% e mais 15% do mercado. Os opositores ao negócio não estão sozinhos: há accionistas que também se opõem à entrada de Champalimaud porque disputam com ele posições na indústria e não querem facilitar ao concorrente uma capacidade financeira muito acrescida. Essa disputa leva a um conflito com Salazar, porventura o mais grave, porque o governo impede a compra do BPA, apoiando os accionistas que contestaram o negócio e vetando-o de facto.

Em 1970, Champalimaud volta à carga. A partir do exílio, monta uma complexa e bem sucedida operação para tomar de assalto o BPA. Cupertino de Miranda encontra-se secretamente em Paris com o empresário fugido e vende-lhe 22,4% dos seus 38% por um milhão de contos. Mas Cupertino pretende manter-se à cabeça do banco. Julga que, com esta quota, Champalimaud será sempre obrigado a negociar acordos. Porém, Champalimaud dedica-se entretanto a coleccionar, também em segredo, as pequenas participações de vários accionistas abrangidos por um acordo de cavalheiros que quase ninguém respeitou – Bordallo, Borges Vinagre, Vinhas, Brandão Miranda, família Sousa Lara, João Lacerda, Domingos Barreiros e família Lello (juntos, com Cupertino, somavam 65%). Com 10% do BPA reunidos assim pelo empresário João Rocha, Champalimaud controla o banco e pode dispensar acordos com o seu fundador. Em Setembro de 1970, empresas de Champalimaud pedem ao BPA uma série de empréstimos avultados, até que estes começam a ser recusados. Champalimaud reúne-se de novo com Cupertino de Miranda e abre o jogo: precisa de dinheiro e é o dono do banco.

Cupertino agira a solo e, quando comunica o sucedido aos seus administradores, o pânico instala-se no BPA. Carlos da Câmara Pestana e Vasco Vieira de Almeida, em conjugação com os genros de Cupertino, acabam por decidir pela hipótese de recurso – o regaço do poder. Era conhecida a antipatia mútua entre Marcello Caetano e António Champalimaud (o sucessor de Salazar abriu o sector dos cimentos à família Queiroz Pereira, decisão que Champalimaud nunca lhe perdoaria). Na reunião com Marcello, recorda Câmara Pestana (Público, 23.02.1998), o presidente do Conselho afirma que, para evitar o negócio, estaria até disposto a nacionalizar os dois bancos. No contexto de então, sendo o BPA o segundo maior banco e o BPSM, de Champalimaud, o terceiro, esta concentração ia demasiado longe para o que o governo queria aceitar no sistema financeiro. O regime protegia mas também limitava.

Não seria necessário nacionalizar os bancos. Em Janeiro de 1971, surge o decreto n.º 1 do Ministério da Justiça, estabelecendo que «os contratos celebrados nos doze meses anteriores e que não tenham sido executados por ambas as partes» e que envolvam 5% do capital, precisam de consentimento da sociedade por maioria de dois terços, de parecer favorável do Conselho de Administração e, no caso das empresas financeiras, do Ministério das Finanças. A 19 de Janeiro sai o despacho de anulação do negócio do BPA. O advogado do foragido Champalimaud, Salgado Zenha, definiu o processo como «locupertinamento à custa alheia». Mas o Estado garantiu o essencial: que o equilíbrio bancário do regime permanecia intocado e que Champalimaud não conseguia tornar-se no gigante da banca que sempre quis ser. A carreira do quase octogenário Cupertino terminava assim: no acordo com Marcello, ficou definida a sua substituição pelo genro e proibida a venda de acções sem a autorização dos dois accionistas minoritários que tinham recusado o aliciamento. A devolução do sinal a Champalimaud demorou até às vésperas do 25 de Abril.

«Marcello é o extraordinário timoneiro do governo da nação», dizia Cupertino de Miranda, ainda grato em 1972. O obreiro da intervenção estatal, Carlos da Câmara Pestana, chegaria a presidente do BPA e à liderança do Grémio Bancário. Em 1975, depois da nacionalização da banca, ruma ao Brasil, onde fez carreira no Banco Itaú. Em 2008, aos 77 anos, é nomeado presidente do maior banco brasileiro, cuja mesa partilha com dois ex-presidentes do banco central e um ex-ministro das Finanças. Por esta via, Câmara Pestana é também administrador não-executivo do BPI, do qual o Itaú é accionista de referência (18%). A sua influência na banca portuguesa foi evidente ainda recentemente, durante a OPA do BCP sobre o BPI, quando se opôs a Jardim Gonçalves apesar de ser seu «grande amigo e lhe dever vários favores pessoais e profissionais» (Nicolau Santos, Expresso, 15.09.2008).

Abertura ao exterior torna-se novo proteccionismo

A abertura da economia portuguesa aos capitais estrangeiros, em particular depois da Segunda Guerra Mundial, teve consequências surpreendentes: uma delas foi a criação da Siderurgia Nacional, protegida da concorrência, e que transformou um dos impérios do século XX, o de António Champalimaud.

João Martins Pereira sublinha esta contradição entre o discurso de abertura e a prática proteccionista, manifesta no «facto, aparentemente paradoxal, de ter sido o processo incipiente de integração europeia, em princípio tendente à liberalização das trocas e ao mercado livre, que esteve na origem de uma empresa industrial fortemente apoiada pelo Estado [a Siderurgia Nacional] e que, com a sua protecção (que veio a chegar à proibição de importações), monopolizou durante décadas o mercado de laminados correntes em Portugal. Indo mais atrás, pode mesmo dizer-se que a origem de tudo esteve na entrada de Portugal como membro fundador, em 1947, da OECE, destinada então a co-administrar a aplicação do Plano Marshall, de que o país viria depois a ser relutante beneficiário» (Martins Pereira, Para a História da Indústria em Portugal, 1941-1965 – Adubos Azotados e Siderurgia, 2005).

A Siderurgia Nacional é criada em 1954 por Champalimaud, então com 36 anos. No ano seguinte absorve a Companhia Portuguesa de Siderurgia, sendo-lhe garantido o monopólio durante dez anos no mercado português. Tanto era assim que a empresa nem tinha director comercial, como regista Martins Pereira, que nela trabalhou no início da sua carreira de engenheiro. Mas nem por isso deixou de haver alguma fricção entre os interesses do proprietário e os do governo. Ferreira Dias e Champalimaud envolveram-se em acesa discussão sobre o preço de venda do aço e as tarifas de protecção: o empresário pedia 30% de taxas e mesmo a proibição de importação dos produtos idênticos, mas o governo não estava disposto a ir tão longe. Ferreira Dias aceitou conceder um subsídio para a exportação, dado que os produtos da Siderurgia não eram competitivos no mercado internacional, mas em contrapartida queria a entrada de capitais públicos ou semi-públicos na empresa, o que não convinha a Champalimaud.

Apesar disso, até 1967, o Estado pagava semestralmente o que fosse necessário para financiar a empresa: mesmo beneficiando da protecção alfandegária e de preços garantidos, a empresa teria sido inviável sem o financiamento permanente do Estado: para um capital de 750 mil contos, operou um investimento de 2,7 milhões, sendo a diferença garantida por capitais públicos. Como escreve Martins Pereira, «em meados dos anos 50, [Champalimaud] não tinha capacidade própria para mobilizar vultuosos capitais sem a garantia do total apoio do Estado (incluindo a concessão de um aval para a encomenda dos equipamentos principais)».

No início da construção da empresa, queixava-se do atraso na expropriação por utilidade pública de terrenos do Seixal, onde a empresa seria instalada. Nesse ano, Salazar intervém directamente em seu apoio. No ano seguinte, o empresário acusa o governo de «obstrucionismo», mas logo corrige num discurso pouco depois, em 1961: «o Estado e a iniciativa privada, cada um no lugar que a Constituição Política lhes atribui, marcharam, assim, lado a lado, em franca e leal colaboração», assegurando a sua fidelidade à ditadura a que tanto devia. Em todo o caso, Champalimaud, entre 1961 e 1965, entra frequentemente em conflito com o governo acerca dos preços no mercado interno. Mesmo dependente do Estado, Champalimaud usou toda a sua influência na ditadura para ampliar as suas regalias.

Champalimaud, Spínola, Pinochet: os bons espíritos encontram-se

A 30 de Abril de 1974, à saída de uma reunião com Spínola, em que o presidente da Junta de Salvação Nacional discute o programa do MFA com os maiores capitalistas portugueses da época, António Champalimaud felicita «todos os que estiveram na base da gloriosa arrancada – o 25 de Abril de 1974». Além de Champalimaud, estão presentes José Manuel de Mello, Manuel Ricardo Espírito Santo, Miguel Quina (o banqueiro portuense do Borges e Irmão). Champalimaud recorda o regime caído há cinco dias e como este «limitava drasticamente a capacidade de acção dos homens de iniciativa» (Filipe Fernandes, Fortunas & Negócios, empresários portugueses do século XX, 2003). Como já sabemos, este antifascismo foi de pouca dura e, para defender as suas posses, Champalimaud e todos os outros passaram-se para a conspiração anti-democrática.

Champalimaud tinha muito a defender: em 1975, era a oitava maior fortuna da Europa. Além da Siderurgia Nacional, a família é dona dos Cimentos de Leiria, Cimentos Tejo, Cimentos de Angola e Moçambique, Companhia do Cabo Mondego, metalúrgicas Cometna, Sepsa, Siderurgia de Angola e Ferrominas, das papeleiras Companhia de Papel do Prado e da Abelheira, de empresas de celulose, a Cemil, a Companhia Portuguesa de Celulose, a Socel. Tem participações na Companhia Industrial de Portugal e Colónias, Laboratórios Vitória, União Eléctrica Portuguesa, Cires, Sotéis. Na área financeira, o grupo tem o Banco Pinto e Sotto Mayor, as seguradoras Mundial, Confiança (esta também em Moçambique e Angola) e Continental de Resseguros. As suas acções valiam 40 milhões de contos, o equivalente a 9,1 mil milhões de euros (valores de 2009). Essa fortuna foi reconstruída depois das vicissitudes da revolução e, em 2008, oito herdeiros Champalimaud figuravam na lista das cem maiores fortunas da revista Exame.

Nos meses seguintes, termina este idílio insustentável com a revolução que começa. As famílias Champalimaud, Mello, Espírito Santo, Vinhas (Central Cervejas), Conceição e Silva (Torralta), com o conde de Caria (parceiro de Champalimaud no BPSM), ainda lançam um efémero Movimento Dinamizador Empresa/Sociedade (MDE/S). Em Agosto, o MDE/S entrega ao governo um documento «por uma reforma das actividades empresariais» e por um «capitalismo moderno, progressista e evoluído», acompanhado de um «plano de investimentos», anunciando querer criar 100 mil postos de trabalho, mas não convencem.

Depois do fracasso da manifestação da «maioria silenciosa», que leva à demissão do presidente Spínola em Setembro de 1974, e com a primeira nacionalização de um banco comercial (o BIP, de Jorge de Brito, preso sob acusações de burla), o ambiente político altera-se. Champalimaud toma iniciativas de outro tipo: transfere 130 mil contos dos cofres do BPSM para o seu pequeno banco em França. Ao mesmo tempo, compra à Empresa de Cimentos de Leiria (ECL) as acções da sua cimenteira no Brasil, a Soiecom, e paga com acções da própria ECL, deixando a fábrica de Minas Gerais fora do alcance das autoridades portuguesas. Depois da nacionalização a 11 de Março de 1975, as administrações do BPSM e da Cimpor (que absorve a ECL) virão a processar Champalimaud por estas operações.

Com o grupo nacionalizado, Champalimaud continua a apostar na aliança com Spínola. A ligação já vem dos tempos iniciais da Siderurgia Nacional (o militar representou o Grémio das Conservas na administração e foi quem vendeu a Champalimaud as primeiras acções na empresa) e da edição de «Portugal e o Futuro» (apoiada através da Companhia de Papel do Prado). Pouco depois do 11 de Março, Champalimaud estará perto de Paris, em casa do empresário Manuel Boullosa, com Spínola, Sanches Osório e Manuel Quina, numa reunião para montar uma estrutura de financiamento do MDLP, a rede clandestina da direita apostada na preparação e provocação da guerra civil. Segundo o depoimento de Sanches Osório, dirigente de extrema-direita, Champalimaud terá condicionado a sua participação no movimento ao controlo da sua direcção (Eduardo Dâmaso, A Invasão Spinolista, 1999). Na versão do jornalista Filipe Fernandes, esta ligação permanece até 1977 (Visão, 13.05.2004). Muitos outros, como Manuel Queiroz Pereira, contribuirão mensalmente para o MDLP. O seu antigo sócio, Boullosa, também apoia o movimento. José Miguel Júdice (que será advogado de Champalimaud vinte anos depois) é funcionário da organização em Madrid, vivendo em instalações religiosas. O tesoureiro é Cota Dias, ex-Ministro das Finanças de Caetano.

Champalimaud estabelece-se no Brasil com os filhos, mas não perderá contactos políticos. Inicia mesmo novas relações: é assim que, pouco depois de chegar ao Brasil, viaja ao Chile, onde se encontra com Augusto Pinochet, o militar que menos de dois anos antes assassinara o presidente eleito e iniciara o extermínio da esquerda (agência EFE, 19.06.1975, citada por Adelino Gomes e João Pedro Castanheira, Os Dias Loucos do PREC, 2006). No Brasil, além da cimenteira Soiecom, a família tem três enormes fazendas que a tornam no maior produtor mundial de feijão em 1995 (DN, 18.03.1995). A fazenda Imperatriz, comprada em Bolsa, inclui um pedaço de reserva amazónica e é a maior do Estado do Maranhão.

http://www.esquerda.net/artigo/quem-foi-champalimaud

HENRIQUE GALVÃO - O INIMIGO Nº 1 DE SALAZAR


Sexta-feira, 12 de Novembro de 2010

"O Inimigo Nº1 de Salazar" de Pedro Jorge Castro
Autor: Pedro Jorge Castro

P.V.P.: 24,00 €

Data 1ª Edição: 2010

Nº de Edição: 1ª

ISBN: 978-989-626-260-0

Nº de Páginas: 408 + 16 extratextos

Dimensões: 160 x 235 mm

Colecção: História divulgativa Editora: Esfera dos Livros

Sobre a obra:

Na manhã daquele domingo, 22 de Janeiro de 1961, os passageiros do paquete Santa Maria apercebem-se de que algo está errado quando encontram marcas de sangue no chão. Um homem armado impede-lhes o acesso ao convés superior. Os empregados fazem correr a notícia: «Uns rebeldes tomaram conta do navio.» A liderá-los está o capitão Henrique Galvão, o inimigo número um de Salazar.

Fervoroso salazarista, Galvão começa a desiludir-se e a afastar-se dos ideais defendidos pelo Estado Novo. A ruptura é assumida quando afronta o regime na Assembleia Nacional, onde denuncia a escravatura e vários negócios promíscuos que envolvem a Administração de Angola. Está aberta a porta para o confronto entre os dois homens. Segue-se uma tentativa falhada de atentar contra a vida do presidente do Conselho, em 1951, a prisão, uma espectacular fuga do Hospital de Santa Maria e o exílio. Salazar terá desabafado na altura: «Vamos arrepender-nos mil vezes. É muito mais perigoso que [Humberto] Delgado.»

O ditador não estava enganado. Galvão prepara a «Operação Dulcineia», que ocupa as primeiras páginas da imprensa internacional e expõe o regime português como nunca antes tinha acontecido. Segue-se o sequestro de um avião da TAP de onde são lançados cem mil panfletos a apelar à revolução, e o depoimento contra Portugal na sede das Nações Unidas.

Com base em documentos, na maioria inéditos, de oito arquivos nacionais e do arquivo particular do capitão, e em testemunhos dos seus principais cúmplices, o jornalista Pedro Castro desvenda a vida de Henrique Galvão, num livro único, com uma narrativa empolgante onde não falta acção e intriga.

Sobre autor:

Pedro Jorge Castro nasceu em Leiria em 1975. Licenciado em Ciências da Comunicação pela Universidade Autónoma de Lisboa, completou também o curso de formação geral em jornalismo do CENJOR. É jornalista há 13 anos e desempenha desde 2007 o cargo de redactor principal da revista Sábado. O Inimigo nº 1 de Salazar é o seu segundo livro, depois de em 2009 ter publicado Salazar e os Milionários.

Publicada por Clube Dos Livros em 19:14
http://clube-dos-livros.blogspot.com/2010/11/o-inimigo-n1-de-salazar-de-pedro-jorge.html

SALAZAR E OS MILIONÁRIOS - PRÓLOGO

Quarta-feira, 21 de Abril de 2010

Salazar e os milionários, de Pedro Jorge Castro

SALAZAR E OS MILIONÁRIOS, de Pedro Jorge Castro, a ler. (Prólogo)

Primeira metade da década de 50. 8 da noite de domingo. O momento reservado para os dois homens mais poderosos do país discutirem o destino de Portugal. No Palácio de São Bento ou no Forte do Estoril, Salazar, à beira dos 60 anos e a meio de 40 no poder, recebia Ricardo Espírito Santo, 11 anos mais novo. Além de dirigir o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, o banqueiro liderava a petrolífera Sacor, que esteve na origem da Galp, e controlava a seguradora Tranquilidade e as Sociedades Agrícolas do Cassequel e do Incomati, em Angola e Moçambique. As suas várias áreas de influência ajudam a explicar como se transformou num conselheiro especial de Salazar para todos os assuntos relacionados com economia, política, diplomacia e artes — e acabou por se tornar também um dos melhores amigos do presidente do Conselho.

Era muitas vezes Maria da Conceição (a Micas), a protegida de Salazar, que abria a porta de São Bento a RES: «Tenho hora marcada», dizia-lhe ao entrar, como se precisasse de justificar a sua presença, cumprimentando-a com um beijinho. Oferecia-lhe com frequência bonecas, chocolates e amêndoas na Páscoa. RES estacionava o carro no parque da residência oficial, pendurava o sobretudo no bengaleiro à porta de entrada e, se Salazar estivesse ocupado, aguardava na biblioteca junto ao seu gabinete, no rés-do-chão. As conversas decorriam no gabinete ou enquanto passeavam pelos jardins de São Bento. Quando terminavam, o ditador acompanhava o amigo até à saída.

Estes encontros semanais constam do diário de Salazar (um livrinho de capa vermelha e letras douradas). A 14.Maio.1950, recebeu Ricardo Espírito Santo entre as 20h e as 20h45 e anotou: «Sua viagem e férias, saúde, alguma coisa de negócios».

Salazar saiu de Portugal 3 vezes — foi a Paris na juventude e 2 vezes à fronteira para se encontrar com Francisco Franco (o ditador espanhol). Aproveitava os relatos das deslocações dos outros para satisfazer a sua curiosidade sobre o mundo. E RES todos os anos fazia longas viagens para tratar de negócios (do banco ou da empresa de petróleos), por motivos de saúde (frequentava termas), de férias (era praticante habitual de esqui e golfe) ou em busca de peças de arte nos antiquários e nos leilões. Foi esse o tópico que Salazar fixou a 17.Dez.1950, depois do encontro de 1,5 h: «Dr. Ric. Espírito Santo - compras que fez em Roma de objectos de arte». A situação da Sacor, criada pelo Estado em 1938 para intervir no mercado dos combustíveis, era discutida na maior parte dos encontros. As entradas nas agendas de 1953-1954 revelam que falaram de «vencimentos dos administradores», de «conversas com ministro da Economia sobre terrenos de que a Sacor precisa» e de «como distribuir 37 500 contos a colocar entre portugueses [num aumento de capital]». As relações com o romeno Martin Sain (o principal accionista da empresa de petróleo), eram alvo de grande atenção. Além de abordarem os temas importantes da Economia como o plano de fomento ou o estado do mercado de capitais, os grandes investimentos eram escrutinados e aprovados nestes encontros. Analisaram a criação da TAP em 1953, a lapidagem de diamantes em Portugal, o apoio à empresa de Siderurgia, que António Champalimaud começou a negociar com o Governo em 1952, e a fundação da sociedade de milionários que iria financiar aquilo a que Salazar chamava «o novo grande hotel de Lisboa» — o Ritz, que só seria inaugurado em 1959, quatro anos depois da morte do banqueiro.

A folha de 3.Março.1953 revela que Salazar recebeu RES e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Cunha, às 7,5 da tarde e que discutiram a prenda que o governante deveria oferecer a Franco, no encontro seguinte com o generalíssimo espanhol. 1 h depois, o ministro saiu mas o banqueiro ficou. Durante mais 1 hora, até às 21h30, relatou a Salazar os bastidores da inauguração do seu museu de artes decorativas, cuja cerimónia decorrera nessa semana, intencionalmente a 28 de Abril, para homenagear o presidente do Conselho no seu dia de aniversário.O costume estava tão enraizado que quando o ditador cancelou um dos encontros semanais, em 1951, RES manifestou por carta a sua grande tristeza. «Tenho muita pena de não ir aí hoje, a nossa conversa dominical é para mim o maior prazer da semana, mas obedeço na esperança de que serei compensado.» E, em Abril do ano seguinte, quando, por estar na Suíça, foi o empresário a não poder comparecer, enviou outra mensagem. Sugeria que Salazar recebesse Mário de Sousa, administrador do Banco Fonsecas, Santos & Viana, para discutir novas medidas relacionadas com as exportações, mas frisava a importância que atribuía a estes encontros: «Eu agradeço (e não lhe levo a mal!) se lhe dispensar meia horazita de um fim de tarde de domingo, desses fins de tarde que eu tanto aprecio e que quase sempre são o melhor prémio para mim, de uma semana de trabalho! Como vê nem de longe o deixo em paz! Despediu-se com um post-scriptum que comprovava a sua intimidade com António Ferro, embaixador em Berna e antigo responsável pelos serviços de propaganda nacional, e com as duas mulheres que viviam na casa do ditador — a governanta e a pupila: «P.S. — Peço o favor [de] dar minhas lembranças a dona Maria, e Maria Antónia. O Ferro gostou muito da carta de vossa excelência.»

Quando estava fora do país, o banqueiro esforçava-se por manter a comunicação de domingo com o governante, que anotava estas chamadas no diário com igual deferência: «Pelo telefone, vários e dr. Ric. Esp. Santo». Em 1954, RES acompanhou o presidente da República, Craveiro Lopes, numa viagem de barco a Angola e São Tomé e Príncipe. Esteve fora 7 domingos: apenas num não conseguiu enviar telegramas dirigidos a «sua excelência o presidente do Conselho» e assinados, simplesmente, Ricardo. Nos 6 que enviou, a falta que sentia dos encontros com o ditador foi sempre manifestada de forma crescente: «Sigo bem mas com saudades», escreveu no segundo, a 31 de Maio; a 20 de Junho, manifestava-se «cheio de saudades»; na mensagem do domingo seguinte lia-se: «As saudades são cada vez mais maiores»; e no último notava-se o alívio por estar quase a regressar: «Vou mais contente a pensar que se os deuses nos forem propícios estarei aí no próximo domingo e poderei matar as saudades que já pesam no meu coração. Gostei muito de o ouvir e espero que este já o encontrará no forte.» Neste telegrama, Salazar anotou a azul a instrução: «Saber quando chega o barco». Um funcionário responderia a lápis: «Chega domingo, dia 11 [de Julho], ao meio-dia». E foi nesse domingo às 19h15 que se reencontraram, no forte de Santo António, no Estoril. Até às 21 h, Salazar recolheu informações sobre o negócio do açúcar e «outros assuntos de África», e, claro, quis saber tudo sobre o que ficou descrito no diário como uma «viagem formidável».

SALAZAR E O DINHEIRO - As pequenas agendas de bolso manuscritas são preciosos indicadores sobre os relacionamentos de Salazar. A de 1954, por exemplo, tem cerca de 100 entradas, entre telefones e moradas. Muitas de mulheres: das senhoras com quem teve envolvimentos amorosos — Christine Garnier, namorada da altura, Mercedes de Castro Feijó, Ernestina Afonso de Barros e Felizmina Oliveira, a primeira namorada, que lhe enviava relatórios a denunciar os inimigos do regime em Viseu; das amigas com quem se correspondia ou que eram visitas habituais da casa, entre as quais Jenny Aragão Teixeira, Fernanda Jardim e Arminda Lacerda; e ainda uma dezena de meninas austríacas que chegaram a conhecer e a corresponder-se com Salazar e que pertenciam a um grupo de 5000 crianças acolhidas por famílias portuguesas depois da II Guerra.

Está na agenda a Presidência da República, o Patriarcado (sem referências ao amigo cardeal Cerejeira, mas com menção do padre Carneiro Mesquita, que rezava missa na Residência Oficial), D. Duarte de Bragança (pai de D. Duarte Pio), os ministros da Defesa, da Presidência, dos Negócios Estrangeiros, os embaixadores mais próximos (Marcelo Mathias e José Nosolini), o seu amigo Mário Figueiredo, Álvaro de Sousa, do Banco de Portugal, Duarte Amaral (delegado do Governo na Sacor e pai de Freitas do Amaral) e, claro, os números 60 483, para ligar a RES em Lisboa, e 143, para Cascais.
O banqueiro surgia também na restrita lista de datas de aniversário anotadas, onde era aliás o único homem, a que se juntavam 5 mulheres - Christine Garnier, as infantas D. Maria Antónia e D. Filipa, Maria Luiza Salvação Barreto e Minda (diminutivo de Arminda Lacerda).

Domingo era o dia em que normalmente Salazar tinha audiência marcada com Craveiro Lopes, presidente da República entre 1951-1958. As reuniões começaram por decorrer entre as 11h30 e as 13 h, mas a sua duração foi encurtando. «A partir do momento em que se gerou um clima de menor cordialidade e confiança entre os dois, tornou-se evidente o propósito do chefe do Governo: havia que chegar o mais tarde possível para sair quanto antes. O pretexto era sempre os rigores de pontualidade da senhora D. Berta...», escreveu Manuel José Homem de Mello. Salazar sabia que a primeira-dama era inflexível com a hora do almoço.

Em 11.Set.1954, o presidente estava na Cidadela em Cascais quando Salazar, que estava no forte do Estoril, lhe enviou uma mensagem que evidencia a pouca vontade de ir ao seu encontro: «Como Vossa Excelência não estará livre a partir do meio-dia, eu poderia passar pela Cidadela pelas 11 horas. Entre as 11 e o meio-dia se poderiam, querendo Vossa Excelência, trocar algumas impressões. Será porém necessário que Vossa Excelência tivesse a bondade de mandar-me buscar, pois estou sem carro.» Não conseguiu furtar-se ao encontro. E a falta de viatura terá soado a fraca desculpa. Nesta altura, o ditador tinha à disposição um Cadillac 75, que era o seu transporte habitual, e um Mercedes à prova de bala, que achava muito grande e vistoso e raramente usava. Havia ainda um carro para os secretários, uma carrinha da residência oficial, e 1/2 automóveis da PIDE que o seguiam para todo o lado. «No Cadillac, tive a alegria de ser o primeiro que telefonou para casa do próprio carro, a pedir que pusessem o almoço na mesa», revelou Franz Langhans, secretário da Presidência do Conselho, num depoimento para o livro Salazar visto pelos seus próximos, onde conta também que o motorista conduzia frequentemente a mais de 130 Km/h, mesmo quando o presidente do Conselho seguia no banco de trás.

A 4.Jul.1937, o chefe do Governo foi alvo de um atentado perpetrado por um grupo de anarquistas, quando saía do carro para ir assistir à missa na capela particular de um amigo, Josué Trocado, na Av. Barbosa du Bocage. Escapou sem ferimentos mas começou aí a desenhar-se a necessidade de deixar a sua casa na R. Bernardo Lima para passar a habitar uma residência oficial, junto ao Palácio da Assembleia Nacional. O Estado pagou então 1005 contos — que a preços de 2009 correspondem a € 845 mil — para expropriar a casa e o parque onde viviam 52 freiras, que tiveram de ser realojadas, segundo O Palacete de São Bento, livro editado pelo gabinete do primeiro-ministro. As obras de adaptação da residência ficaram a cargo da Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, pertencente ao Ministério das Obras Públicas. Foram coordenadas pelo arquitecto António Lino e demoraram quase 2 anos. Salazar elaborou um manuscrito de 28 páginas (a que depois ainda acrescentou mais 13), com a descrição exaustiva do que precisava em cada divisão da casa, e uma nota de aviso logo a abrir: «O trabalho foi feito na orientação de nada modificar do traçado da casa e de não alterar as divisões existentes, aproveitando-se tudo o que existe com a maior economia.» Perguntava se o seu móvel poderia servir para chapéus na entrada da casa; na casa de banho previa uma banheira com água quente, aquecida pelo fogão a esquentador de gás, mas frisava: «Não é preciso comprar; instala-se o meu»; fez questão de levar a sua mobília de escritório para um gabinete no rés-do-chão, e a sua cama para o quarto onde viria a dormir, no 1º andar — «escolhido só por ser o mais silencioso da casa e o mais próximo da casa de banho», justificou. Franco Nogueira descreveu depois na biografia em 6 volumes do ditador: «No seu quarto fica uma ampla cama de pau-preto, sob um crucifixo na parede da cabeceira, e na mesa ao lado dispõe dois medalhões ovais, de marfim, com a efígie de seus pais.» Os telefones ficavam na mesinha-de-cabeceira.

As indicações de Salazar não esqueciam nenhum detalhe: no «escritório habitual de trabalho e de receber (...) falta a carpete (...) que deve ser adquirida em relação com a mobília e a cor das paredes»; nos sanitários: «Deve prever-se que as portas possam ser fechadas por dentro da casa de banho. Nesta não precisa de haver mictório nem gás para aquecedor — mas deve prever-se água quente, aquecida no fogão»; «Sendo possível e não caro, conviria que as casas de banho não fossem inteiramente iguais na cor do material empregado para forrar as paredes e o pavimento.»

Neste manual para a equipa do Ministério das Obras Públicas, deu instruções para que a mobília da sala onde se reunia o conselho de ministros não fosse luxuosa: «A decoração da sala, cortinados, etc. devem ter em conta que a sala se destina principalmente a trabalho intelectual.» Estava disposto a transportar o rádio da sala do conselho para o escritório e quis que os CTT ligassem a mesma antena às duas divisões: «Não é necessário que pudessem funcionar duas telefonias; mas que a telefonia pudesse funcionar em dois lugares.» E quando pensou no vão de escada, Salazar foi quase premonitório: «Terá de ser estudado o aproveitamento deste vão (talvez um divã encimado por pequena prateleira de estante para livros ligeiros?) — pode ficar um cantinho agradável.» Tornou-se de facto um dos seus recantos preferidos, onde tomava o pequeno-almoço e lia os jornais e algumas cartas particulares. Também se ocupou das dependências da residência. O motorista teria de pagar renda e a sua casa deveria «ser mantida no maior estado de limpeza e arrumação». E deixava um aviso: «A vida na casa não pode ser barulhenta e desordenada. Tem de haver ordem e sossego.» Descrevia como deviam ser os quartos e casa de banho do criado, os espaços para os coelhos, as galinhas, os pintainhos e o depósito de lenha, e impôs a criação de uma entrada de serviço pela Calçada da Estrela: «Eram inevitáveis encontros desagradáveis (as pastas dos ministros e as sacas do carvão).»

Publicada por Anabela Melão em 14:09

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