Friday 11 February 2011

INCÊNDIO NAS CALDAS

Descuido com vela em pensão ilegal causa fogo

Funcionava como uma espécie de pensão, mas estava ilegal e o espaço era pequeno demais para tanta gente. Haveria sete espaços alugados como apartamentos mas até ao fecho desta edição ainda não foi possível apurar quantas pessoas ali viviam. Estima-se que cerca de dezena e meia de pessoas de várias nacionalidades partilhariam o primeiro piso e as águas furtadas do prédio nº 4 da Travessa da Piedade, no centro histórico das Caldas da Rainha, onde na madrugada de segunda-feira um casal e o filho morreram intoxicados e outras sete pessoas ficaram feridas, na sequência de um incêndio que terá sido provocado por uma vela acesa.

O incêndio ocorreu cerca das 4.40 da manhã, num dos quatro quartos arrendados no primeiro andar, com treze metros quadrados, ocupado por Diana Kabanchuk, ucraniana, de 32 anos, que ficou com marcas de queimaduras na face e ficou com o cabelo queimado. As chamas terão começado por consumir um sofá-cama, onde terá caído uma vela acesa. A mulher tinha adormecido. O comandante dos bombeiros voluntários das Caldas da Rainha e responsável da Protecção Civil, José António, confirmou esse cenário, admitindo que o “descuido com uma vela” terá originado o fogo, que destruiu também a mobília do quarto. Não ardeu nada onde estavam os outros quartos mas estavam com muito fumo”, adiantou.

Num dos quartos, que estava trancado à chegada dos bombeiros, encontrava-se a família que seria vítima de inalação de fumos enquanto dormia. João Francisco Mafra Monteiro, de 51 anos, Maria Sameiro Pires Costa, de 41, e João Dinis Costa Monteiro, de 19 anos, foram encontrados já sem vida. De nada valeu a tentativa de reanimação.

“Estariam treze pessoas aqui a viver. Três morreram. Quatro foram para o hospital e duas foram assistidas no local e dispensaram transporte para o hospital. E os outros fugiram pelos seus próprios meios”, descreveu José António, que se manifestou surpreendido com o cenário encontrado na casa.

“Havia espaços do edifício que estavam a ser utilizados ilegalmente”, relatou. “Não era possível ter licença de habitabilidade tendo em conta as condições que encontrámos. Viver nas circunstâncias actuais, pelo menos nas águas furtadas, era impossível”, denunciou José António. Era nas águas furtadas que viviam as três vítimas mortais. “Era um espaço muito exíguo e pouco arejado para estarem lá três pessoas”, sublinhou, reconhecendo haver “sobrelotação”.

Situado entre o tradicional Mercado da Fruta e o Parque D. Carlos I, o edifício chegou a ser uma escola primária e foi reformulado em 1999, tendo sido aumentado num piso “para ser utilizado como escritórios, mas a utilização para habitação e aluguer de quartos não estava prevista”, revelou o presidente da Câmara Municipal, Fernando Costa.

Segundo o autarca, “a Câmara desconhecia completamente a utilização daquele espaço para residência”.

O JORNAL DAS CALDAS apurou junto de fonte camarária que as obras tiveram licença para ampliação de um piso destinado a escritório. Contudo, “nunca foi requerida vistoria nem passada licença de utilização”, referiu a mesma fonte.

A Câmara vai abrir um processo de averiguações e admite que o proprietário, António José Pinto Monteiro Duarte, que tem várias habitações arrendadas na cidade, todas legalizadas, venha a ser sancionado. A contra-ordenação pode variar entre 500 e 20 mil euros.

Pânico

O pânico provocou reacções diferentes, desde ficar imobilizado à espera de socorro, subir para as águas furtadas, mas houve também quem tenha saído pela porta principal. Três moradores que subiram para a cobertura do edifício foram resgatados pela auto-escada dos bombeiros, assim como uma das ocupantes que pulou do telhado para outro prédio. A escada em caracol que dava acesso às águas furtadas não permitia movimentos eficazes dos soldados da paz.

O proprietário do imóvel chegou ao local e foi bater às portas dos quartos para as pessoas saírem. Ficaria com queimaduras de segundo e terceiro grau numa das mãos, tendo sido transportado para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

Seis moradores, de origem brasileira e de países de Leste, ficaram com ferimentos ligeiros. Três mulheres e um homem foram assistidos no Centro Hospitalar Oeste Norte, nas Caldas da Rainha, e outras duas mulheres no local do incêndio, recusando ser transportadas. Uma das sinistradas tinha efectuado um salto de três metros de largura do telhado do prédio para outro em frente, o que lhe provocou fracturas nos pés, tendo ficado internada no serviço de ortopedia do centro hospitalar.

O socorro foi prestado por vinte elementos e oito viaturas dos bombeiros das Caldas e dois elementos e uma viatura da corporação de Óbidos, auxiliados pela viatura médica de emergência e reanimação do INEM. A PSP orientou o perímetro de segurança. As viaturas dos bombeiros foram posicionadas na Rua de Camões, em frente ao Parque, por não poderem chegar até à Travessa da Piedade.

O fogo foi dado como extinto depois das seis da manhã e os meios dos bombeiros regressaram ao quartel às 07:42. A Polícia Judiciária de Leiria esteve no local a fazer recolha de vestígios, após o que permitiu a entrada dos moradores que a partir das 09:58 puderam entrar nos quartos.

Os corpos das três vítimas mortais foram transportados para o gabinete médico-legal de Torres Vedras.

Uma das moradoras, a ocupante do quarto onde as chamas terão começado, foi ouvida na terça-feira no Tribunal das Caldas da Rainha. A mulher tem um processo de legalização pendente no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O Ministério Público informou que vai avançar com a abertura de um inquérito ao incêndio.

Socorro divide opiniões

Uma das moradoras, de nacionalidade brasileira, que não quis revelar o nome, queixou-se da demora do atendimento. “Fizeram-me muitas perguntas no 112 e eu pedia para que fossem urgentes. Os bombeiros demoraram quinze a vinte minutos a chegar. Liguei para o dono do prédio e foi muito mais rápido”, alegou.

Mary Ellen, de 25 anos, outra das moradoras, de nacionalidade brasileira, operária numa fábrica, ocupava a casa há cerca de um ano, com o seu companheiro, Heitor Procopio, de 22 anos.

Ana Cláudia, mãe de Mary, recordou o momento em que a filha lhe telefonou a pedir socorro. “Estavam desesperados a tentarem escapar. Estava a ouvi-los e a ver que ia perdê-los. Tive de ligar para a polícia e bombeiros. Eles salvaram-se porque ficaram no telhado”, relatou, desabafando: “Se não fosse o dono do prédio, as pessoas não se salvavam. Os bombeiros não chegaram cinco minutos depois”.

“Estava a dormir e só fui alertada porque me bateram à porta, senão ficava morta. Havia muito fumo. Não sei de mais nada”
, declarou Lloba, moradora de nacionalidade ucraniana.

Os outros ocupantes do prédio que se encontravam no local recusaram-se a prestar declarações. Alguns apareceram no prédio para levar o que tinham nos quartos, indo para casa de familiares ou amigos. Suspeita-se que alguns possam estar em situação ilegal no nosso país.

O comandante dos bombeiros assegurou que “o acesso foi rápido. Desde o momento em que recebemos o alerta até cá chegarmos foram três minutos. Desde que a senhora fez a chamada e até nós chegarmos foram doze minutos”. “O que levou mais tempo foi transferir a chamada do 112 para o CDOS de Leiria e daqui para os bombeiros das Caldas com toda a informação. Mas é um tempo razoável. É claro que se tivessem ligado directamente para os bombeiros teria demorado menos tempo”, explicou José António.

No seu entender, a reacção das pessoas perante o fumo também não foi a mais correcta. “Todos os quartos têm extintor de incêndio mas nenhum foi utilizado. Também o detector de incêndios não funcionou. Se tivesse funcionado teria dado alerta com o disparo de uma sirene. As pessoas não terão dado conta do incêndio ou pode significar falta de cultura de segurança em Portugal. As pessoas vêem-se numa situação destas e não têm discernimento suficiente para activar o extintor a mão”, comentou.

Segundo fez notar, os moradores tentaram evitar ao máximo o fumo e alguns subiram para o topo do prédio, o que é uma reacção habitual. Mas deviam ter tentado vencer a barreira do medo e enfrentar o fumo. Se tivessem descido era melhor. Mas o casal que faleceu estava fechado no quarto”.

Casal não vivia junto

Maria Sameiro não morava com João Francisco. Tinham casado na Suíça, mas a união não tinha sido oficializada em Portugal. Por isso eram ambos considerados solteiros e, de resto, estavam separados há algum tempo, porque ela tinha escolhido ir viver com outra pessoa. Mas, segundo Luísa Ferreira, amiga de Maria, “foi expulsa no domingo da casa do actual companheiro e para não ficar na rua, o João acolheu-a”.

Ela não quis vir já para a minha casa. Se tivesse vindo, nada disto teria acontecido”, lamentou Luísa Ferreira, que considerava a vítima mortal “como se fosse uma irmã”.

Nesta segunda-feira tinha-me fartado de ligar para os quatro telemóveis deles mas ninguém me atendia. Já desconfiava que alguma coisa pudesse ter acontecido. E soube do incêndio, mas nunca pensei que tivessem sido eles a morrer”, desabafou, depois do JORNAL DAS CALDAS a ter informado do sucedido.

“Ainda hoje me tinham perguntado por ela e eu respondi que estava bem. Estava longe de saber da desgraça”, declarou, adiantando que “na próxima sexta-feira ela vinha cá a minha casa comer sardinhas”.

Maria e João têm outra filha, de 18 anos, que se encontra num internato feminino em Leiria. “Foi-lhes retirada pela Segurança Social, porque não tinham condições para mantê-la. O mesmo tinha acontecido com o filho, que esteve na Misericórdia das Caldas, mas ele agora já era adulto e passou a viver com o pai”, revelou Luísa Ferreira.

Segundo descreveu, o quarto improvisado nas águas furtadas do nº4 da Travessa da Piedade “incluía no mesmo espaço a sala e cozinha e era muito apertado”. “Mas era onde eles podiam viver, pagando cerca de 120 euros mensais”, apontou. Luísa Ferreira disse desconhecer quem eram os outros ocupantes do prédio.

João Francisco trabalhava numa estufa de flores na zona industrial das Caldas da Rainha. O filho sofria de diabetes e tinha estado internado no hospital na semana passada, mas estava a tentar fazer uma formação para poder trabalhar. Maria Sameiro estava desempregada mas ia começar a trabalhar numa fábrica de peixe em Peniche.

A família era ajudada por uma associação que fornece refeições a sem abrigo e desfavorecidos. “Eram pessoas pobres e iam procurar-nos todos os dias para os almoços e jantares, porque tinham este pequeno quarto perto da associação. Lidava com o pai e com o filho, porque a mãe nunca aparecia. Levavam saco para o pão para servir de farnel no dia a seguir, quando o pai ia trabalhar. Tratavam-me por tia. Fiquei chocada com o que aconteceu”, referiu Maria José, voluntária da associação De Volta a Casa.

Maria Raposo, uma das poucas vizinhas, uma vez que os prédios à volta não têm moradores permanentes, contou que “neste prédio era um corrupio de gente a entrar e a sair. Hoje eram uns e amanhã vinham outros. Não os conhecia. Esta noite fiquei com medo porque ouvi a aflição de uma criança a gritar e chorar, e depois a sirene dos bombeiros e muita gente. mas chamas não se viam. O filho do dono do prédio, que não mora ali, estava no telhado a gritar por socorro e a dizer que havia fogo provocado por uma vela. A única coisa que ele repetia era: ´Acudam. Há fogo. Foi uma vela’”.

Outros estragos

No rés-do-chão do prédio funciona a associação Recreio Club, onde se realizam actividades de ocupação dos seniores. O espaço, que inclui salas destinadas aos Forcados Amadores da cidade e ao projecto Olha-te, dirigido a doentes oncológicos, foi afectado pela água utilizada pelos bombeiros no combate às chamas. “Há muita água nas paredes e no chão, e cheiro incomodativo, pelo que interrompemos por um dia a nossa actividade”, contou Célia Antunes, coordenadora do Olha-te. O seguro vai ser activado.

No local estiveram o adjunto do Governador Civil de Leiria, Jorge Sobral, e até o deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia da República, Heitor Sousa, que defendeu o apuramento de responsabilidades do sinistro, pretendendo saber qual o envolvimento da autarquia.

Fernando Rocha, deputado municipal do Bloco de Esquerda, enviou um requerimento à Câmara no sentido de saber se “providenciou no sentido de ser ordenado um rigoroso e célere inquérito para o apuramento de todas as diversas responsabilidades, saber qual o tipo de licenciamento da construção e se a Câmara efectuou uma vistoria final”.

Também os vereadores do Partido Socialista na Câmara solicitaram esclarecimentos ao comandante dos bombeiros, relatando que foram informados que “existiu por parte de privados uma situação de aproveitamento ilegal de um espaço que não dispunha de licença de utilização e onde foram realizadas obras à margem da lei e que, de acordo com os técnicos, terão amplificado os contornos trágicos deste incêndio”.

Defenderam também que os serviços municipais de acção social estivessem no local para averiguar as necessidades das famílias desalojadas e a criação de um fundo de emergência social para apoiar situações destas.

Filmagens a 500 euros

Emir Handzo, de 29 anos, austríaco, vendeu à TVI por 500 euros as filmagens que fez do incêndio. Como também é bombeiro voluntário em Innsbruck, está há uma semana alojado no quartel dos bombeiros das Caldas para fazer um trabalho sobre o ano europeu do voluntariado e captou as imagens do combate às chamas desde a saída das viaturas do quartel.

“No local havia muito fumo e tinha de se usar uma máscara de protecção e já não filmei nada no interior”, disse ao JORNAL DAS CALDAS.

A verba que arrecadou com a venda das filmagens vai ser doada aos bombeiros das Caldas.

Francisco Gomes (texto)

Carlos Barroso (fotos)

http://www.jornaldascaldas.com/index.php/2011/02/10/3-mortos-7-feridos/#more-35392

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