Sunday 19 December 2010

ENTREVISTA COM JOÃO CÉSAR DAS NEVES


"A entrada do FMI seria um problema para os 'lobbies'..."


por JOÃO MARCELINO Hoje

"Em Abril, ou Maio, houve um Conselho Europeu e o eng. Sócrates voltou, com um puxão de orelhas da Merkel, dizendo: os alemães disseram 'Portugal tem de fazer coisas!' Nos dias seguintes foram anunciadas duas medidas. Primeira, cortes no subsídio de emprego e no rendimento social de inserção; Depois, manutenção do TGV para o futuro. E eu percebi... Um Governo socialista vai cortar o subsídio de desemprego e o rendimento social de inserção, mas não consegue enfrentar quem o suporta, quem lhe paga, que são as construtoras... Esse facto despertou-me a atenção para o nível a que estes grupos instalados estão, de facto, a controlar a política"

João César das Neves, economista, professor catedrático na Universidade Católica, é um homem frontal, que fala como sempre escreve: com entusiasmo e sem medo das palavras, seja quando aborda a situação do País seja quando defende a instituição da família e os valores da sua religião. Nesta entrevista, o professor de Economia desdramatiza uma eventual entrada do FMI em Portugal; o cidadão aponta o dedo ao lobby das construtoras; o homem revolta-se contra o ataque em curso à família; e o crente saúda o Papa considerando-o, pela sua qualidade, uma dádiva de Deus, bem acima dos padres pecadores, alguns pedófilos, que lhe não minam a fé.

Li uma declaração sua, em Outubro, em que dizia que a intervenção do FMI em Portugal já devia ter acontecido há mais tempo. Mantém o que disse?

Mantenho o que dizia na altura, ou seja, que há um ano e tal, dois anos, devíamos ter ido ao FMI sem ser obrigados pelos mercados, de mote próprio, assumir que precisávamos de uma ajuda e que queríamos pôr a casa em ordem. Se o tivéssemos feito, seria uma surpresa: ninguém estava à espera, teríamos imediatamente um apoio e iríamos começar a tomar as medidas necessárias. Agora é completamente diferente. Se fôssemos agora, já não iríamos com a mesma atitude, vamos quase de joelhos.

Tal como o Governo diz agora, também entende que devemos tentar tudo para não ir ao FMI neste momento?

Não, não! Não é verdade! Acho que ir ao FMI não é uma catástrofe. O FMI é uma perda de face para o Governo e é, sobretudo, um problema para os lobbies, que estão a colocar- -se para que a austeridade caia ao lado e não em cima deles.

Para o País seria melhor?

Penso que para o País seria melhor. Neste momento, o problema do FMI põe-se a nível europeu: depois de ter ido a Grécia, depois de ter ido a Irlanda...

... No âmbito da defesa da moeda...?

... No âmbito de defesa da moeda. A seguir a Portugal, toda a gente está a olhar para Espanha. E Espanha é o primeiro dominó que não é a feijões, é a sério. Até agora já são três, mas são três pequeninos.

Está a dizer-me que a UE pode ter interesse em que o FMI não venha a Portugal?

Pode ter interesse em que o FMI não venha a Portugal, para parar aqui uma coisa que já parece ser um contágio. Aliás, passou a ser um problema geral do euro. Já se começa a falar que a questão ameaça, além da Itália, a França. E isso muda completamente o xadrez! Ir ao FMI já não é uma coisa que Portugal possa fazer de mote próprio, é uma coisa que... vamos ver se os alemães nos dizem. Há duas semanas, disse a vários amigos que não chegava ao fim do mês de Novembro, quanto mais ao fim do ano. Neste momento, estou convencido de que este ano já não vamos, porque os mercados acalmaram, vêm as férias, as festas, já não tem efeito.

Os mercados acalmaram, mas os juros da dívida continuam muito altos...

Estão altos e assim vão ficar. Não vejo que venham a descer facilmente. O problema seria se continuassem a subir! De facto, neste momento, os juros não são sustentáveis, não podemos continuar com estes juros por muito tempo. Mas agora o jogo é outro. Agora é mesmo europeu, e se a Europa começar a tomar medidas... O Conselho deste fim-de-semana foi um primeiro passo, mas está muito longe do que é necessário.

Essa necessidade europeia pode ser, no curto prazo, boa para Portugal. Mas a longo prazo não será mau que possamos passar por esta crise sem termos feito tudo para vencer a situação?

Nós temos de fazer tudo!

E fazer tudo, além daqueles sacrifícios que têm sido pedidos, é fazer mais o quê?

Diria que é preciso começar a fazer a sério. Repare que ainda não se pediram sacrifícios aos portugueses! Esta crise, até agora, para pessoas como nós, que têm um emprego garantido e estão a receber o seu ordenado, até foi boa, porque os preços estiveram baixos, até houve deflação. Quem é que pagou a crise até hoje? Foram os desempregados, foram as empresas que estão aflitas, com a corda na garganta, e não estão a pagar salários ou estão a pagar salários mais tarde. Há uma pequena percentagem de portugueses que sofreram até agora! Com este Orçamento, aprovado há duas semanas, diz-se que vamos começar a sofrer, "vai haver aumento de impostos", mas ainda ninguém sofreu nada, "vai haver descida de salários", mas ainda não desceu nenhum! De facto, sacrifícios, sacrifícios, ainda ninguém viu nada!

Quando diz que não sentimos nada, o que é que poderemos ter de sentir se a crise vier a instalar-se em toda a sua dimensão?

Claramente, vamos ter de trabalhar mais, vamos ter de reduzir salários, vamos ter de poupar mais. E vamos ter de fazer isto tudo e, ao mesmo tempo, continuar a produzir e a exportar e a ter nova inovação. Vamos ter de fazer aquilo que durante 15 anos não fizemos, porque isto não é culpa do Governo de Sócrates, nem do antecessor, nem do antecessor. É um problema de 15 anos! Começámos isso em meados da década de 90, exactamente quando o caminho para o euro - costumo dar este exemplo - nos abriu o bar. Quer dizer, temos bar aberto, podemos ir beber à vontade e de borla, quase estamos a pagar as taxas alemãs! E embebedámo-nos de dívida.

E agora temos aqui um problema para corrigir em dez anos?

Temos aqui vários elementos novos. Mas penso que não é preciso dramatizar: não vão ser dez anos. Mas, primeiro, é preciso começar a contar o relógio, o que ainda não aconteceu. Ainda não começámos de facto a apertar o cinto. Basta ver as manifestações. As manifestações a que estamos a assistir não são de pobres, não são de desempregados! São dos tais lobbies, pessoas, funcionários. Não estou a dizer que sejam malandros, mas estão a tentar defender o seu. É normal!

Como economista, quando viu que Portugal estava num caminho que ia desaguar numa crise?

Para aí em 97, 98. Foi nessa altura que comecei a escrever. E ainda não mudei o tom da minha escrita sobre esse assunto. Esta é a quarta austeridade consecutiva! Tivemos uma austeridade com Guterres em 2001, depois saiu. A seguir, o Durão Barroso. O País estava de tanga, mais austeridade. Depois, José Sócrates apareceu em 2005 com austeridade. Esta é a segunda austeridade de Sócrates, a quarta austeridade em dez anos! É a mesma! Sobre cada uma delas sempre se disse que era a última - "isto agora faz-se e resolve-se" -, mas é a mesma e nunca tivemos de facto o problema resolvido. A bola de neve continuou a aumentar. E é preciso mudar as regras da despesa pública. É preciso mudar estas coisas! O doente está a ir a correr à urgência, põe-se-lhe um penso e sai outra vez. Estas medidas são, mais uma vez, um penso. O doente tem de ser internado e tem de ter cirurgia, e isso o FMI faz! O Governo só é capaz de fazer...

Um Governo minoritário está em condições de pedir a intervenção do FMI?

Estou convencido de que sim.

Mas como é que a seguir se faz, sem maioria, a revisão da matéria laboral, que normalmente está inerente?

Com o FMI, as culpas passam a ser do FMI. Portanto, o Governo fica logo isento das culpas. Um Governo maioritário fica com as culpas do que fizer. Um Governo minoritário que apresente um plano muito duro e faça uma chantagem com a oposição - "isto é o que o País precisa, os senhores ou nos ajudam, ou derrubam-nos"-, esta não teria coragem para o derrubar e ficava com as culpas! Viu-se! O PSD fez isso de alguma maneira dizendo "nós estamos conscientes", e depois o Governo, em vez de avançar para uma austeridade a sério e de ter jogado com o PSD, assumindo que o PSD ficava com as culpas, aldrabou o PSD, e agora o PSD já não está disposto para segunda. Mas acho que essa seria a solução. Disse isso logo assim que apareceu uma minoria: isto da minoria dá uma oportunidade. Se o Governo estiver mesmo preocupado em resolver o problema do País e não simplesmente em sair com boa figura, poderá ser uma oportunidade. Agora estar a fingir que é maioritário sem o ser e tentar fingir que não há problema e que está tudo bem, quando, de facto, há problema. Parece que o Governo é o único que não vê! Este plano de quarta-feira à noite chama-se Crescimento e Produtividade. São declarações muito bonitas! Somos os únicos!

Olhando para estes sucessivos pacotes de austeridade, acha que são as medidas necessárias ou ainda faltam algumas?

Não estão. São medidas pontuais, sempre! Subir impostos, essa é fácil, é a tradicional, não resolve problema nenhum.

Teremos de ir mais agressivamente ao Estado social, à saúde?

Temos de fazer reformas. É preciso alterar as regras de maneira justa! E não cair mais sobre os pobres. Isso é que é difícil, claro. Ainda por cima, estamos a ser injustos. De facto, há muitos salários extraordinários, há muitas regalias, pessoas que chegaram ao topo da carreira, que já não fazem nenhum e estão a receber imenso dinheiro. O problema a que nós chegámos tem que ver com o facto de os ministérios terem sido capturados pelos lobbies, pelos grupos que deviam regular! O Ministério da Saúde tem como problema fundamental os médicos, não os doentes. O Ministério da Educação tem como problema fundamental os professores, não os alunos! Isto é assim em todos os ministérios! Há sobretudo um gesto que me chocou brutalmente: em Abril, ou Maio, houve um Conselho Europeu e o eng. Sócrates voltou, com um puxão de orelhas da Merkel, dizendo: os alemães disseram: "Portugal tem de fazer coisas!" Nos dias seguintes foram anunciadas duas medidas. Primeira, cortes no subsídio de emprego e no rendimento social de inserção; depois, manutenção do TGV para o futuro. E eu percebi... Um Governo socialista vai cortar o subsídio de desemprego e o rendimento social de inserção, mas não consegue enfrentar quem o suporta, quem lhe paga, que são as construtoras... Esse facto despertou-me a atenção para o nível a que estes grupos instalados estão, de facto, a controlar a política.

Parava imediatamente as grandes obras?

Neste momento, pelo menos, adiava.

Nas conversas mais desesperadas, às vezes oiço falar-se num eventual possível abandono de Portugal da moeda única. Acha que isso é um cenário possível? Que consequências teria para um país como o nosso?

Um clube de onde se pode ser expulso é um clube que não existe. A Grécia, por exemplo, nunca devia ter entrado. E é um país que devia sair. Mas não pode sair. Neste momento, considerar a possibilidade de se sair da moeda única seria o fim da moeda única e, provavelmente, o fim [da União Europeia].

E para nós, pessoalmente?

Seria, imediatamente, uma catástrofe, porque teríamos uma subida brutal das taxas de juro. Estas taxas de juro, de 5% ou 7%, que nos estão a assustar muito, saltavam para 50%. Se nós saíssemos do euro, evidentemente que podíamos ter algumas ajudas da Europa, mas acho que tudo isso era ficção, porque era impossível. E nós seríamos um pária durante uns anos largos, como aconteceu ao Equador, há uns anos, quando faliu com a sua dívida. Seria uma coisa parecida com o que aconteceu com o Equador.

Tem dúvidas de que esta legislatura chegue ao fim?

Toda a gente tem, não sou só eu. Mas José Sócrates é um grande político, é um táctico genial. E é um homem muito perigoso...

Perigoso? Em que sentido?

É muito poderoso. Ganha facilmente os debates, na manipulação da comunicação social, na imagem política do Governo. Não devemos dá-lo como defunto. Ou melhor, acho que politicamente, no sentido agora nobre do termo, quanto à gestão do País, ele já morreu há um ano. Disse-o, aliás, na altura, no Diário de Notícias. Já morreu, e ninguém lhe disse. Mas uma coisa é morrer como líder do País, que já não acredita nele, outra coisa é morrer como líder do Governo e como primeiro-ministro. As sondagens dão uma situação inesperada comparando, por exemplo, com outros políticos, como Guterres ou Durão Barroso, que, em problemas menos graves do que este, tinham resultados das sondagens muito piores do que Sócrates tem. Porque, de facto, ele é muito hábil tacticamente. Não estou a dizer que vai perder ou que está próximo de haver eleições. Por outro lado, a oposição não tem interesse nenhum em pegar no Governo.

E vê alternativas a este Governo, a este primeiro-ministro?

O problema é muito complicado. Por isso é que o FMI facilitava tudo, não é? Continuo a dizer que o FMI é uma saída, porque chegava cá e não estávamos dependentes destas coisas. De facto, Pedro Passos Coelho não está a mostrar grande capacidade de inspirar o povo.

Nas sondagens ele tem tido uma subida...

Também era melhor se não tivesse! Se durante esta situação não tivesse, então seria uma catástrofe. Claro que subiu! É bom que suba. E é normal que suba!

Não o vê como líder de um Governo de Portugal?

Não o conheço, de todo. Penso que é uma personagem demasiado parecida com o Sócrates para conseguir destacar-se

Parecida?

O seu caminho, o seu percurso político. Aliás, como Sócrates, que foi uma alternativa do PS muito parecida com Santana Lopes. É muito curioso. Sócrates, quando apareceu, estava a confrontar-se com Santana Lopes, e eles foram lá buscar ao partido o mais parecido com Santana Lopes, que era o primeiro-ministro, para o confrontar. E agora o PSD fez o mesmo: foi buscar Pedro Passos Coelho, que é o mais parecido com o Sócrates, para conseguir. É preciso perceber que o PSD tentou a alternativa exactamente ao contrário: Manuela Ferreira Leite é o mais contrário, que é possível, a Sócrates e falhou. Claramente, falhou. Não sei porquê...

Falhou nos resultados, tendo razão nas suas ideias e no debate?

Claro! Toda a gente sabia que ela tinha toda a razão. Na altura disse que o País caíra num pântano, como disse o engenheiro Guterres - é uma frase que eu considero dos melhores diagnósticos da situação portuguesa -, e ao pântano os leões não vão. Um leão que tenta entrar num pântano sai de lá sujo, nos pântanos só há animais de pântano! E a Manuela Ferreira Leite ficou suja por isso.

E, neste estado de coisas, uma remodelação governamental teria alguma utilidade? Falo nisso porque, como sabe, tem sido um tema de debate público...

Utilidade não teria. Pelo contrário, criaria problemas. Agora, o jogo é um jogo mediático. E disso Sócrates sabe muito melhor do que eu, que não sei nada, e é provável que ele o faça! O Zapatero, aqui ao lado, é muito semelhante ao Sócrates e também um táctico genial. Zapatero fê-lo, e é possível que nós também o façamos, mas por essa razão! É evidente que trocar as pastas, num momento de crise, é aprender tudo de novo! Um novo ministro da Cultura, um novo ministro da Educação, só iria complicar tudo, num momento em que é importante continuar. Para o País não seria bom uma remodelação, mas a ideia não é essa! A ideia do Governo é sobreviver, é convencer as pessoas de que agora vai ser novo, e isso, provavelmente, é capaz de ser uma boa ideia.

Acha que neste momento o Governo só pensa nisto? Sobreviver politicamente?

Penso que Sócrates, neste momento, só pensa nisso. Não lhe conheço, desde há muito tempo, uma estratégia com pés e cabeça para o País, depois de ter visto no programa de 2005 uma das melhores estratégias que conheço. Costumo dizer a toda a gente: "Leiam o programa de 2005." O que Sócrates disse, o que ele fez nos primeiros três meses, era exactamente o que era preciso fazer para o País! Não o fez, disse! Com toda a clareza disse o que era preciso fazer. E eram medidas duras.

Uma agenda reformadora?

Exactamente! E toda a gente aplaudiu de pé! As oportunidades que Sócrates teve em 2005 são impossíveis de reproduzir porque teve maioria absoluta, teve dois anos e tal sem eleições - o que é uma coisa raríssima de acontecer em Portugal, é o segundo maior período sem eleições da história de Portugal moderna, democrática - e ainda teve uma outra coisa muito mais valiosa do que isto tudo: o povo à espera de reformas, porque, de facto, os governos de Durão Barroso e Santana Lopes assustaram. As pessoas estavam disponíveis para haver reformas. Aliás, Sócrates fez uma coisa espantosa, que nunca vi. No discurso de posse, que é o momento, digamos, celebrativo, bateu num lobby - as farmácias -, e as pessoas aplaudiram, não se puseram do lado do lobby, como era costume!

E logo a seguir vieram os juízes...

Exactamente! E, depois, fez uma coisa muito bem feita, que foi mostrar as benesses extraordinárias dos tais lobbies, dos funcionários, falava das reformas excepcionais...

E, na economia, esse programa de 2005 parecia-lhe tão bom?

O que ele pretendia na altura era o problema essencial: o Orçamento. E arranjou um truque, e foi o primeiro sinal de que as coisas não estavam a correr bem. Ele tinha prometido que não subia impostos - era uma promessa solene -, e depois fez aquele número extraordinário de uma comissão do Banco de Portugal presidida pelo professor Constâncio que...

... Perdeu o ministro das Finanças e aumentou os impostos...

... Perdeu o ministro das Finanças, aumentou os impostos e as coisas começaram a correr mal. Ficou claro que ele ia pelo caminho fácil de subir os impostos. Não mudava as regras, não fazia reformas, a bola de neve da despesa continuava a crescer, mas durante um tempo ele aliviava. O erro fundamental foi não ter saído em 2009. Se ele tivesse saído em 2009, saía em ombros! Quis continuar, pumba! Rebentou-lhe em cima a bola de neve que criou em 2005!

Veja aqui o vídeo da entrevista:








http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1738551


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