Sunday 15 August 2010

O MILIONÁRIO DE CORAÇÃO GENEROSO

Memória

A visão empresarial permitiu-lhe construir, quase ao longo de um século, uma fortuna. O dinheiro não lhe apagou da memória as origens, a família e os pobres. Financiou parte das infra-estruturas públicas de Vieira de Leiria, seu berço, zangou-se com a terra, reconciliou-se e até quis escrever um livro de memórias. Desgastado pela guerra que o dividiu entre a única filha viva e a secretária e amante, preferiu deixar em testamento o destino da sua fortuna. Parte do património foi já delapidado e a sua maior vontade, a de criar uma Fundação em com o nome da família, está travado por uma disputa sem fim previsto à vista

Sempre que os talheres eram cuidadosamente limpos um a um e à mesa colocado o melhor serviço de pratos para uma refeição requintada, o "senhor" Lúcio Tomé Feteira estava de visita à casa dos irmãos em Vieira de Leiria. As empregadas de servir eram obrigadas a trajar impecavelmente e, depressa, o anúncio da visita chegava à vizinhança, ansiosa por ajuda.

A memória é de João Dinis, filho da cozinheira de João Tomé Feteira, um dos 11 irmãos de Lúcio. João era ainda criança, mas recorda-se da imponente imagem de Lúcio. "Ele era visto pelos irmãos como alguém superior. Era um senhor", recorda o empresário, que hoje ocupa uma parte da fábrica aberta por João Feteira em 1950, que produzia aço para a fábrica de limas, fundada pelos pais.

"Quando os vieirenses ouviam dizer que ele vinha, juntavam-se à porta da casa onde jantava", lembra. Sabiam que Lúcio recompensava em dinheiro aquele que lhe abrisse a porta. Lúcio "era um homem generoso", nas palavras da sua filha Olímpia Feteira de Menezes, e incapaz de virar a cara a quem precisasse dele. Até dava dinheiro às famílias carenciadas.

Lúcio Tomé Feteira era o mais novo dos irmãos, ao lado de um irmão gémeo, que morreu. Ainda não era nascido quando o pai, Joaquim, fundou a Empresa de Limas União Tomé Feteira em resposta à necessidade de afiar os instrumentos usados pelos serradores, em 1856. "Teve o privilégio de ir estudar na Escola Comercial do Porto", recorda Albano Tomé Feteira, o único sobrinho directo e testemunho vivo da segunda geração Tomé Feteira. Foi o único dos irmãos que estudou, mas não se livrou dos banhos gelados no rio Lis, a que o pai obrigava "para se tornar num homem rijo".

Albano, que ganhou o nome do pai, seguiu as pisadas da família. Esteve à frente da fábrica de limas ao longo de oito anos, acabados em 1992, depois da venda das instalações a uma empresa austríaca. Guarda na carteira uma lista feita a computador das datas da morte dos familiares. E recorda-se bem porque Lúcio se zangou com a terra e esteve anos sem a visitar.

Foi após o 25 de Abril, quando o irmão Albano foi sequestrado na fábrica pelos operários revoltados pelo regime escravo em que laboravam. "O meu pai já tinha dado muito à terra", lembra. O terreno do campo de futebol, que recebera o seu nome, tinha sido doado por ele. Mas, após o sequestro, até o busto de Albano plantado numa praça de Vieira andou tempos desaparecido. O povo revoltou-se com a família que antes dera trabalho a 1200 pessoas. E Lúcio, que também já contribuíra para a biblioteca, os bombeiros e a cantina de uma escola, considerou o acto pura ingratidão.

O espírito empreendedor de Lúcio foi herdado de família mas fomentado pelo sogro, o patriarca Dâmaso e pai de Aldelaide Feteira, com quem se casou. Só que Dâmaso não terá ficado muito contente quando Lúcio, em 1936, cria a fábrica Covina, em Santa Iria de Azoia para produção de vidro plano.

Neste ano, Lúcio dividia-se entre cargos de responsabilidade na Fábrica de Limas - cuja quota cedeu mais tarde ao irmão - e à frente da junta de freguesia local (entre 1934 e 1939). Paulo Vicente, agora vereador na Câmara da Marinha Grande, mas dez anos à frente da Junta de Freguesia de Vieira de Leiria, lembra Lúcio "como um contador de histórias". "Eu chegava a pensar que ele romanceava os episódios, até que um dia fui consultar as actas da junta de freguesia e confirmei a sua memória infalível", conta.

Lúcio explicou-lhe um dia porque aceitara o cargo de presidente. Foi pouco depois de as freguesias substituírem as paróquias. A separação da Igreja do Estado levou algumas freguesias a apoderarem-se de bens do clero. "Ele encarregou-se de devolver os terrenos e o ouro à Igreja e isso está tudo relatado em acta", diz.

Um ano antes de morrer, Lúcio confidenciou a Paulo Vicente a vontade de comemorar o seu centésimo aniversário em Vieira. "Queria que eu organizasse uma grande festa para toda a vila", lembra. Lúcio já não sobreviveu até esse dia. Mas este não foi o único desejo que deixou por realizar. O magnata ainda pensou em escrever as suas memórias e publicá-las na Biblioteca de Instrução Popular de Vieira. Não chegou a fazê-lo. Foi da biblioteca que o seu corpo saiu para o jazigo de família do cemitério local. Na cerimónia esteve presente o seu grande amigo, Mário Soares. Dizem na terra que chegou a mandar-lhe lagosta para a prisão, por altura da sua reclusão.

Rui Pedrosa, actual responsável pela biblioteca, lembra-se do dia em que Lúcio se reconciliou com o povo de Vieira de Leiria, em 1994. Nesta altura, era Lúcio um milionário com currículo empresarial em Portugal e no Brasil e uma passagem, por Angola, onde foi responsável pela repartição de finanças. "O meu pai era conhecido mundialmente", revela Olímpia Menezes, lembrando que até privou com a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (1975).

Naquela ocasião, Lúcio deslocara-se a Vieira de Leiria para tratar de um prédio que construíra junto à praia quando surge a ideia de o surpreender. Estava hospedado na Pensão Clara e, sentado no terraço, recebeu a visita e actuação do rancho folclórico. "Ele ficou muito emocionado, fartou-se de chorar", recorda o professor Fausto, responsável pela pensão.

No final da actuação, Lúcio passou um cheque de mais de 200 mil escudos à biblioteca. "Ainda me mostrou a perguntar o que achava, fiquei surpreendido!", conta. A partir daqui, e até morrer, em 2000, todos os meses dava cem mil escudos à biblioteca onde hoje está o busto que mandou fazer para colocar na Covina - a empresa alvo de nacionalização no pós-25 de Abril em 80%, sendo os restantes 20% adquiridos pela empresa francesa Saint Gobain.

Arminda, mulher de Fausto, afirma que quem preparou a surpresa foi Rosalina Ribeiro, sua secretária e amante que ao longo de 30 anos o acompanhou sempre nas visitas que fazia à Vieira. Rui Pedroso chega mesmo a descrevê-la como "a sua sombra".

Aos olhos de Arminda, ela era apenas uma funcionária dedicada. "Às vezes ficava aqui alojada na pensão com os tios que a criaram. Estava sempre rodeada de pessoas mais velhas", conta Arminda, que nunca viu em Rosalina uma mulher ambiciosa e desejosa de dinheiro. Rosalina ficou órfã cedo e nunca alimentou a relação com o único irmão. Aos 19 anos, empregada num escritório de advogados, conhece o empresário do ramo da construção Luiz Ribeiro, viúvo e 30 anos mais velho. Poucos anos antes morrer, em 1980, terá sido o próprio Luiz Ribeiro a pedir a Lúcio Tomé que a empregasse como sua secretária pessoal na Covina.

A ascensão de Lúcio não foi só marcada pelo dinheiro, mas pelas mulheres. "Era um mal de família, só eu é que saí certinho", conta o único sobrinho vivo, Albano. "Até o meu pai foi salvo do sequestro por uma operária com quem tinha uma relação", ri-se. Antes de conhecer Rosalina, Lúcio era já casado com Adelaide quando soube da gravidez de uma mulher com quem se envolvera. Contou tudo à mulher e os dois assumiram a criança. Olímpia de Azevedo Tomé Feteira recebeu o primeiro nome de uma tia paterna a quem Lúcio entregava especial devoção. Foi essa irmã quem criou na fábrica de limas um infantário para os filhos dos operários.

Quatro anos depois, Adelaide dava à luz um filho varão. "Lucito", como ficou conhecido em Vieira, sofria de esquizofrenia. Passou anos em tratamento mas acabou por morrer aos 30 anos, em 1976. A partir daqui também Adelaide começou a definhar. Mulher caseira, ao cuidado de uma sobrinha, não sabia se o marido estava no estrangeiro, em negócios, ou com amantes.

Rosalina foi trabalhar com Lúcio mas depressa se tornou imprescindível na sua vida. Olímpia, a filha, diz que foi ela quem minou a sua relação com o pai - marcada por trocas de cartas azedas ou por abraços de reconciliação.

Empurrado pela política de Salazar, Lúcio abriu uma empresa de vidro no Brasil. Foi lá que a sua relação com Rosalina se fomentou. Em Lisboa, "Lina" arrendou o apartamento que recebera do falecido marido nos Capuchos, Lisboa, e recebeu do patrão um no 4.º andar da Avenida Luciano Cordeiro, em Lisboa. Rosalina queixou-se de falta de sol, então Lúcio ofereceu- -lhe um outro, dois andares abaixo, e mais solarengo. Fez o mesmo com uma vivenda no Algarve, quando Rosalina lhe disse que a primeira era pequena.

Rosalina tinha ainda apartamentos na praia de Vieira de Leiria. Ajudou os sobrinhos e os sobrinhos- -netos, os únicos que aceitaram na família do marido Ribeiro. Ainda hoje, são os seus nomes que constam no testamento que deixou. Oito meses após a violenta morte de Rosalina no Rio de Janeiro, é difícil aos familiares falar sobre o que mais admiravam nela. Mas, se por um lado vizinhos e amigos viam em Rosalina uma mulher disponível e "amiga dos seus amigos", os Tomé Feteira viam-na da pior forma.

"Ela era amante dele e mais não digo por respeito à sua morte", desabafa Albano Feteira. A engenheira Olímpia, no entanto, não se coíbe de lhe chamar "vigarista". Afirma que todas as fotografias tiradas ao lado do pai serviram "para se aproveitar" num processo que moveu no Brasil para pedir "a união estável" e ficar ela com a fortuna destinada à legítima mulher de Lúcio Tomé Feteira.

Dois anos antes de morrer, em Dezembro de 2000, a saúde do milionário estava já debilitada. A mulher, na casa de família na Avenida Júlio Dinis, em Lisboa, quase cega, consumida por uma doença grave. Lúcio decide ir morar com Rosalina no apartamento que lhe oferecera.

Em Vieira de Leiria, as casas de estilo senhorial são hoje de familiares afastados da geração de Lúcio. A casa do seu pai, Joaquim Feteira, é um prédio moderno. Mas são as letras do seu nome que estão na placa da rua.

Por vários edifícios da vila há placas indicativas da ajuda dos Tomé Feteira. Mas a casa, com piscina, court de ténis e campo de futebol - construída por Lúcio no terreno da fábrica de limas - está ao abandono. Era ali que Lúcio queria ver erguida a fundação com o nome da família. Dez anos após a sua morte, nada foi feito. E a sua fortuna estará dilapidada por causa de uma guerra que, quando assinou


DIÁRIO DE NOTÍCIAS 15-08-2010

SÓNIA SIMÕES

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