Memória
Espanha acorda para o drama do tráfico de bebés durante o Franquismo
As histórias repetem-se: depois do parto o obstetra dizia que a criança tinha morrido e os pais nunca mais viam o bebé. Acabavam a enterrar urnas fechadas com cadáveres inexistentes. A Espanha começa agora a descobrir um passado aterrador: durante o Franquismo (e mesmo já em democracia) o país terá testemunhado o rapto generalizado de bebés entregues a famílias “politicamente correctas”.
As pessoas implicadas interrogam-se sobre o que aconteceu realmente aos seus recém-nascidos ou questiona-se sobre a sua verdadeira identidade .
Ontem, em Madrid, mais de 250 pessoas pertencentes à Anadir - Asociación Nacional de Afectados por Adopciones Ilegales juntaram-se frente à procuradoria-geral pedindo justiça.
Os manifestantes vinham de diferentes regiões espanholas e empunhavam cartazes onde se liam mensagens como “Vítimas do Tráfico de Bebés - Queremos justiça” e “Se duvidas da tua identidade une-te a nós. Nós podemos ajudar”.
A maioria destas pessoas interroga-se, há vários anos, o que aconteceu realmente aos seus recém-nascidos ou questiona-se sobre a sua verdadeira identidade.
O fundador da Anadir, António Barroso, é uma dessas pessoas. O homem que sempre tinha conhecido como pai confessou-lhe, no leito da morte, tê-lo comprado por 200 mil pesetas a uma freira, em Saragoça. “Por detrás desta denúncia há uma luta de muitos anos para conhecer a verdade e uma esperança de reencontro com as nossas famílias biológicas”, disse Barroso à saída do edifício do procurador-geral, que não quis receber os representantes da Anadir, indica o “El País”.
Análises de ADN vieram a provar, mais tarde, que Barroso não era, de facto, o filho biológico do casal que o criou.
Noemí González, actualmente com 82 anos, foi outra das pessoas que ontem se deslocou à procuradoria-geral. A sua história é perturbadoramente parecida com muitos relatos de outras mulheres: “Dei à luz no dia 16 de Julho de 1961 na Clínica Santa Cristina, na rua O'Donnell, em Madrid. Levaram a minha filha para ser pesada e já não a voltei a ver mais. Tomei conhecimento que ela tinha morrido quando me disseram que já a tinham enterrado”, conta Noemí, citada pelo “El País”. “O médico disse ao meu marido que Deus nos tinha feito um grande favor. Não sei a que é que se referia. Sempre tive dúvidas. Sempre pensei que me pudessem ter enganado e alimentei a esperança que ma devolvessem. Acredito muito em Deus e é para mim insuportável pensar que havia freiras e padres implicados nisto”.
Máfia de médicos e intermediários
Enrique Vila, o advogado das vítimas, descreve o que se passou entre as décadas de 1930 (em plena Guerra Civil) e 1970 como uma “máfia” de médicos e de intermediários que trocavam crianças por dinheiro. Muitos destes bebés foram retirados a famílias pobres e simpatizantes da esquerda republicana e entregues a famílias mais em linha de pensamento com o regime. A Anadir indica, porém, que alguns bebés foram raptados já depois da morte de Franco, em 1975.
“Tudo começou por motivos políticos mas no final qualquer criança podia ser alvo. As pessoas viram nisto um negócio em potência”, indicou o advogado Enrique Vila, citado pela BBC.
Durante décadas, a Anadir estima que milhares de mulheres foram pôr flores a campas vazias e que milhares de bebés cresceram com cédulas de nascimento falsificadas.
Aquilo que as vítimas destes actos “condenáveis” pedem agora é que os culpados sejam castigados:
“Médicos, religiosos, trabalhadores de agências funerárias, intermediários...”, indicou Vila, citado pelo “El País”.
“E os pais que compraram os seus filhos também cometeram um delito, porque falsificaram um documento público ao registarem-nos como próprios”, embora - ressalve o jurista -
“a maioria não soubesse que eram roubados”. “Está na mão desses falsos filhos actuar, ou não, contra eles”.
“Mais do que tudo, queremos que se saiba a verdade. Muitos espanhóis são filhos roubados e não o sabem ou morreram sem o saber”, assegurou o advogado.
A Anadir quer igualmente que o Executivo espanhol estabeleça um banco de ADN ara ajudar mães e filhos roubados a encontrarem-se. A Associação já conseguiu meio milhão de assinaturas para pedir ao Congresso essa base de dados genética.
Caso o procurador-geral considere que os delitos cometidos tenham já prescrito, a Anadir pretende levar o caso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
A Associação para a Recuperação da Memória Histórica recordou igualmente em comunicado que a convenção internacional da ONU de protecção contra desaparecimentos forçados obriga o Estado a investigar o sucedido.
28.01.2011 - 10:31 Por Susana Almeida Ribeiro
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