Tuesday, 15 June 2010

O TRIBUNAL DE CONTAS E A CRISE

"Responsabilidades têm de ser claras" > Expresso


O presidente do Tribunal de Contas assume que uma das suas prioridades é promover mudanças no Código dos Contratos Públicos, consagrando, entre outros aspectos, uma maior responsabilização dos gestores públicos. Guilherme d'01iveira Martins alerta: tem de haver cuidados redobrados na concepção dos projectos e no lançamento dos concursos para que a evocação dos erros e omissões nas obras não se banalize.

- O lema do Tribunal de Contas é 'ajudar o Estado e a sociedade a gastar melhor'. O Estado tem feito tudo menos gastar bem?

- Tem havido uma crescente eficácia no controlo das contas públicas ao longo dos anos. E da parte da sociedade e da opinião pública há uma crescente tomada de consciência de que o dinheiro é dos contribuintes e tem de ser sujeito a um controlo redobrado.

- Numa altura de crise como a que estamos a viver, os Tribunais de Contas assumem uma importância crescente.

- O Tribunal de Contas tem tido uma inserção muito significativa em termos internacionais, na organização europeia dos tribunais de contas, o Eurorai, cuja presidência vamos assumir em 2011. Fomos dos que defendemos, quando os primeiros sinais da crise se revelaram, que era indispensável uma coordenação maior entre Estados para que o governo económico fosse uma realidade. Em Portugal, a lei de 2006 veio na altura própria pois os instrumentos de que dispúnhamos, em particular para o controlo do endividamento das regiões e autarquias, era limitado e foi reforçado.

- Esse reforço da legislação é satisfatório ou há necessidade de alterar alguma coisa?

- É satisfatório. Sobretudo dá um sinal de que todo o dinheiro público, onde quer que seja, deve ser sujeito ao escrutínio no Tribunal. Desde 2006 podemos julgar entidades privadas, cidadãos que tendo recebido subsídios do Estado o utilizam diferentemente daquilo para que foram destinados.

- O Tribunal de Contas tem os meios adequados para cumprir o seu papel?

- Tem. O Tribunal de Contas é no contexto do Estado uma das unidades mais qualificadas. Quando cheguei ao Tribunal tínhamos cerca de 600 funcionários e hoje temos cerca de 550 mas o perfil técnico e de qualificações subiu.

- Quantas entidades privadas foram alvo de processos por terem usado indevidamente dinheiros públicos?

- Não temos entidades privadas que tenham sido já julgadas e responsabilizadas, mas essa legislação teve um efeito dissuasor que se nota num crescente cumprimento de sanções de forma voluntária. Nos últimos dois anos aumentou significativamente a eficácia sancionatória do Tribunal. Estamos a falar de aumentos de 200% a 300% na aplicação de sanções. A eficácia aumentou pela melhoria da legislação e da articulação com o Ministério Público.

- O que destaca como mais relevante no relatório de auditoria aos contratos adidopais, divulgado na semana passada?

- É um relatório inédito, onde é feito o levantamento da aplicação do Código dos Contratos Públicos no que se refere aos contratos adicionais. Trata-se de 1607 adicionais a contratos de empreitadas entre Setembro de 2006 e Junho de 2008. O relatório diz-nos que os desvios, as chamadas derrapagens, se devem sobretudo à revisão de preços e à demora na execução dos projectos e na concretização dos contratos. Relativamente aos contratos adicionais, em 17% dos casos o acréscimo de custos foi superior a 20% do valor inicial e apenas 7% das situações corresponderam a um aumento de custos próximos do limite legal de 25%.

- O que é preocupante...

- Aqui temos um alerta: talvez o limite de 25% face à realidade seja muito generoso porque se só 7% das situações se aproximam deste limite é essencial perceber como é que o novo limite de 25% não poderá induzir uma maior dimensão dos desvios através dos contratos adicionais. Concluímos assim que os contratos adicionais geram desvios menores do que estávamos à espera.

- E em relação aos erros e omissões passa-se o mesmo?

- Outro aspecto que destacamos é o suprimento de erros e omissões. São necessários cuidados redobrados em relação à concepção dos projectos e ao lançamento dos concursos, para garantir que a evocação dos erros e omissões não se banalize. E há esse risco. É indispensável que o regime relativo aos erros e omissões seja mais exigente e rigoroso.

- Como é que essa exigência se pode materializar?

- É necessário haver uma responsabilização maior dos dirigentes, dos gestores, para sabermos aquilo que é a responsabilidade do projecto e aquilo que é a responsabilidade do empreiteiro. A nossa preocupação é responder à pergunta: a quem cabe o quê? Há uma certa difusão da responsabilidade e é indispensável que a responsabilidade fique clara.

Acredito que há circunstâncias excepcionais, naturalmente pode haver erros e omissões mas temos que ver se essas circunstâncias são verdadeiramente cionais. Apenas em 20% dos casos analisados havia mesmo circunstâncias imprevistas na realização dos trabalhos. Os restantes estão desconformes com a lei.

- A que se devem mais os desvios e derrapagens?

- Muitas vezes é o projecto que tem fragilidades. Quando se lança o concurso há logo fragilidades que estão patentes e são essas que têm de ser evitadas.

- Que apreciação faz do Código dos Contratos Públicos?

- Este código é muito positivo. Acontece, porém, que num balanço sereno podemos concluir que há aperfeiçoamentos a introduzir para que o Código tenha maior eficácia.

- Acredita que o Parlamento vai avançar com esses aperfeiçoamentos?

- Os dados são claríssimos. Se temos um Código que constituí um passo positivo devemos dar todos os passos complementares para que ele seja um factor de rigor e de disciplina para melhorar a utilização do dinheiro público.

"É preciso um cuidado extremo ao lançar concursos"

Guilherme d'Oliveira Martins recusa a ideia de que esteja a "pregar no deserto". E garante que as recomendações são ouvidas

"Há um maior sentido de responsabilidade nas empresas do Estado", afirma Guilherme d'Oliveira Martins. Mas ainda há um longo caminho a percorrer para que os seus gestores possam ser bons exemplos de aplicação de dinheiros públicos. "Há situações muito diferentes. E isso tem ficado bem evidente em relatórios que temos feito, designadamente num sector que nos preocupa muito, o dos transportes".

O presidente do Tribunal de Contas considera, por outro lado, que "a crise vai obrigar a que no sector empresarial do Estado se introduzam elementos cada vez mais exigentes na utilização dos dinheiros públicos. Há uma maior eficácia dos mecanismos de controlo, designadamente através da acção do Tribunal de Contas".

Oliveira Martins refere, por outro lado, que a tendência geral é para que as entidades fiscalizadas pelo Tribunal de Contas corrijam total ou parcialmente os problemas detectados nas auditorias. Recusa assim a ideia de que ande a 'pregar no deserto'.

"No último parecer sobre a Conta Geral do Estado detectou-se que 80% das recomendações do Tribunal de Contas tinham sido cumpridas total ou parcialmente e que no ano anterior esse nível tinha atingido os 60%", afirma.

Quanto às queixas de algumas entidades de que há um desfasamento grande entre as análises do Tribunal de Contas e a realidade do momento em que os relatórios são divulgados, diz estar consciente do problema. Há casos mesmo de empresas, como a Águas de Portugal, que dizem que a sua reputação ficou manchada pela análise do Tribunal porque quando ela foi tornada pública, alguns dos problemas identificados já estavam corrigidos. "Com o tempo temos aproximado as nossas auditorias do momento presente. Por isso é que hoje as auditorias, quando são iniciadas, são-no relativamente a exercícios próximos e não a exercícios distantes. Como instituição responsável, tiramos sempre lições, positivas ou negativas, daquilo que fazemos.

Uma das nossas preocupações é a actualidade e a pertinência, que são hoje uma prioridade". Outra das questões que têm levantado polémica é a do chumbo dos contratos da concessão de estradas, determinado pelo agravamento dos custos da primeira para a segunda fase. Esta semana o Tribunal de Contas deu luz-verde à concessão do Baixo Tejo, mas ainda há casos em que o processo está bloqueado. Que lição se pode tirar desse processo? "A lição fundamental que temos de tirar é que sempre que a lei for cumprida, o Tribunal de Contas emite os vistos com naturalidade. Mas não houve prejuízos para a economia nacional, os mecanismos legais funcionaram e houve reforma dos contratos, o que levou a que alguns já tenham sido viabilizados", afirma. Oliveira Martins defende que "é fundamental um cuidado extremo no lançamento dos concursos.

É o momento em que tudo tem de ficar claro". O Tribunal de Contas está a analisar todas as medidas antícrise que foram tomadas. "Entendemos que essas medidas têm de ser articuladas com os objectivos estruturais da União Europeia", afirma.

> Publicado no jornal Expresso a 12 de Junho de 2010, por Isabel Vicente e Pedro Lima

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