Alexandra Lencastre "Se isto correr mal vou para as carmelitas descalças"
Alexandra Lencastre, 44 anos, no palco do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa
De volta ao teatro como a mulher fatal de "Um Eléctrico Chamado Desejo", reconhece que quis ser freira para fugir à realidade. Um pouco como ser actriz.
Numa das primeiras vezes que fez teatro na universidade, levou com tomates. No Conservatório foi baptizada de Estrelinha de Belém porque se vestia de cor-de-rosa e usava maquilhagem. Prestes a fazer 44 anos e com uma carreira notável, Alexandra Lencastre ri-se de tudo isto. A rainha das novelas da TVI, que foi amiga do Poupas na "Rua Sésamo", regressa agora ao teatro numa encenação de Diogo Infante da peça "Um Eléctrico Chamado Desejo", de Tennessee Williams. Encontrámo-la no camarim depois de um ensaio de imprensa e de duas sessões fotográficas. Acabava de mudar de roupa e punha a pulseira Power Balance em frente ao espelho com a foto das filhas e uma cruz, quando nos recebeu e encaminhou para a varanda do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Durante 45 minutos, falou sem parar. Sempre sem conseguir evitar as emoções nem as lágrimas nos olhos.
Acha-se parecida com Blanche DuBois - a personagem principal da peça "Um Eléctrico Chamado Desejo"?
Era inevitável sentir que as pessoas me iriam colar a ela. A questão da idade, de estar só e de a imprensa cor-de-rosa me ter atribuído inúmeros namorados - aliás mereciam um prémio pelo número impressionante de romances. Tive muito receio, conversei com o Diogo [Infante] e com os outros actores [Albano Jerónimo, Lúcia Moniz, Pedro Laginha]. Mas com o trabalho fui-me sentido cada vez mais saudável comparada com a Blanche.
Demorou 12 anos a voltar ao teatro. Porquê só agora?
Foi o braço do Diogo que me tirou de um caminho de que não achava que ia conseguir sair. Deixar a televisão ia ser difícil. Ele ajudou-me de outra forma. Disse-me: "A razão mais forte para não fazeres teatro estes anos todos passa muito pelas tuas filhas. Esse deve ser um dos primeiros obstáculos a ultrapassar." Por isso, fez questão que elas viessem assistir a um ensaio da peça.
Ele já a tinha convidado antes?
Sim. Quando o Diogo estava no Teatro Maria Matos. Mas ele tem um lado encantador e pragmático. Quando percebia que eu tinha outro trabalho, ou alguma dúvida, dizia "não" antes de mim. Poupava-me de fazer uma coisa que me custa tanto.
Custa-lhe dizer "não"?
Sempre fui assim. Quando o meu irmão, o meu ídolo [Pedro Pedrosa, um ano mais velho] me convidava para jogar à bola com os rapazes e me pedia para ir para a baliza, não era capaz de recusar. Ninguém queria ser guarda-redes. Apanhava grandes boladas, magoava-me, mas não dizia "não".
As suas filhas já a viram nesta peça. O que acharam?
A mais velha [Margarida, 14 anos] vive isto de forma mais empolgada, já contou a peça toda aos amigos, apesar de lhe dizer que não podia. Até tentou passar umas cenas comigo [decorar falas da peça], mas fazia tantas perguntas que não passávamos da mesma cena. Quer muito ser actriz. Ainda não percebi se tem talento ou só jeito. É muito nova. Não a deixaria trabalhar agora, não ia ser bom. Ela diz que vai ver a peça todos os fins-de-semana com os amigos. É assim um bocadinho exagerada, uma características das actrizes. A mais nova [Catarina, 12 anos] é mais desligada. É surf, computadores. Agora diz que quer ser fotógrafa. O que a fascinou na peça foi o jogo de luzes na tela.
Depois do sucesso das novelas, poucos se recordam da Alexandra no teatro.
As pessoas já se esqueceram e há uma geração que nunca me viu nos palcos. Uma vez um jornalista perguntou-me: "Oh, Alexandra, e não pensa em fazer teatro?" Eu respondi: "Olhe, já fiz 38 peças de teatro."
Quando é que percebeu que queria ser actriz?
Sempre quis. Mas nunca fui levada a sério, nem apoiada pela família. Fazia teatros em casa, com os primos. Escrevia as peças e encenava-as, mas depois os miúdos fugiam de mim.
Porquê?
Oh, eu queria fazer uma coisa muito a sério e eles queriam era brincar. Começavam a rir e eu ficava danada.
Acabou por ir para filosofia.
Naquela altura só havia o Conservatório Nacional e outra escola, mas era preciso fazer primeiro o 12º ano. Fui-me desiludindo um bocadinho e optei por Filosofia. Era uma das minhas disciplinas preferidas. Os meus pais achavam que devia procurar uma profissão que me desse mais estabilidade. Como tinha uma sede de justiça muito grande, o meu pai achava que devia ir para Direito. Sendo eu uma pessoa com tantas dúvidas, fui para filosofia à procura das respostas e da verdade. Na faculdade conheci um grupo de psicologia que fazia teatro e foi nessa altura que comecei a representar.
Como foi subir ao palco?
Foi horrível. Numa das primeiras vezes que actuei com o grupo "No pote das ginjas", fomos a um encontro de teatro universitário e levamos com tomates. Não achava possível que as pessoas tivessem levado mesmo tomates. Rimos imenso. Havia uma adrenalina inexplicável. A única coisa que sabia era que me faltava técnica, por isso fui para o conservatório.
E é lá que lhe dão o nome de Estrelinha de Belém?
Estávamos numa fase pós-revolução. O pensamento era: "Sou actor, logo não tenho artifícios. Sou natural e tenho o meu cheiro." Sim, mas um banho não faz mal. Como morava no Restelo e ia para as aulas de corpo de maillot cor-de-rosa, de fita na cabeça, blush e rímel. Achavam-me a maior fútil do mundo. Fui logo catalogada a Estrelinha de Belém. Alguns professores também gozavam comigo, mas depois tinha o professor Eurico de Lisboa, que era um santo, me ensinou tanta coisa. Ele dizia-me que eu era uma louca sensata, uma mistura muito boa para uma actriz.
Era boa aluna?
Era aplicada e participava muito nas aulas. Quando me corria mal uma prova escrita pedia logo uma oral. Tinha sempre 16 e 17. Mas passei uma adolescência com muitas crises existenciais. Sempre a pensar: "porque estou aqui e não ali". Viajava de comboio para ir estudar na casa de um colega e aquela viagem fazia-me viajar para outros mundos. Ficava meio perdida.
Pensou em ser freira?
Sim. Agora também pensei nisso, se isto correr mal vou para as carmelitas descalças [risos]. Sou católica, embora tenha ficado triste com a instituição Igreja. Não sou uma fiel praticante, mas rezo todos os dias. Acho que queria ser freira para fugir à realidade. De certa forma, ser actor também o é.
Como lida com a fama e com o facto de toda a gente a reconhecer na rua?
Como sou pequenina, se for de ténis e boné na cabeça e nada de glamour, posso ir a qualquer hipermercado que ninguém me conhece. Mas ser reconhecida é muito simpático. O Raul Solnado dizia uma coisa engraçada: "as palmas são afrodisíacos". Uma senhora chegou a dizer-me que eu a inspirava, que tinha passado por coisas semelhantes, que se tinha divorciado na mesma altura, tinha duas filhas, e que de cada vez que me via a trabalhar, tinha forças para o fazer. É certo que também há quem nos diga coisas horríveis, tipo: "Você não presta".
Já lhe disseram isso?
Sim. Chegaram a dizer-me: "Odeio vê-la nesses papéis. Não faça mais novelas". Acho que o público tem direito à sua opinião. Estamos a passar na rua, somos públicos.
Teve fãs a perseguirem-na?
Sim, mas coisas leves. Já tive de mudar de telemóvel, só isso.
Este mês faz 45 anos, já fez muitas produções fotográficas sensuais. Sente-se bem com o passar do tempo?
Isso das fotografias é tudo photoshop. Não lido bem com o passar do tempo. Tenho pena de já não ver tão bem, não ter tanta energia. Há uma certa decrepitude que me assusta e que é real. A pior de todas é intelectual. No lado das rugas, estou-me a borrifar. Qualquer dia se puder e tiver oportunidade financeira faço qualquer coisa, nomeadamente puxar estas pálpebras para cima. É uma coisa genética. O meu pai, o meu irmão e a minha filha mais velha têm todos. É do lado dos Pedrosas. Acho que isso baixa muito o olhar.
Não tem medo de o fazer?
Não. Às vezes levanto-me de manhã e digo: "Que horror". Lembro-me de uma frase da Blanche: "Nunca a luz do dia mostrou uma ruína tão completa". Às vezes sinto-me assim. Quando me levanto e olho ao espelho... Mas é só pele. Cá dentro ainda há um coração a bater cheio de força e fé.
Teatro Nacional D. Maria II
"Um Eléctrico Chamado Desejo", de Tennessee Williams
De Quarta a sábado às 21h30 e Domingo às 16h00
Preço: 7,5€ a 30€.
por Vanda Marques , Publicado em 04 de Setembro de 2010
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Alexandra Lencastre, 44 anos, no palco do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa
De volta ao teatro como a mulher fatal de "Um Eléctrico Chamado Desejo", reconhece que quis ser freira para fugir à realidade. Um pouco como ser actriz.
Numa das primeiras vezes que fez teatro na universidade, levou com tomates. No Conservatório foi baptizada de Estrelinha de Belém porque se vestia de cor-de-rosa e usava maquilhagem. Prestes a fazer 44 anos e com uma carreira notável, Alexandra Lencastre ri-se de tudo isto. A rainha das novelas da TVI, que foi amiga do Poupas na "Rua Sésamo", regressa agora ao teatro numa encenação de Diogo Infante da peça "Um Eléctrico Chamado Desejo", de Tennessee Williams. Encontrámo-la no camarim depois de um ensaio de imprensa e de duas sessões fotográficas. Acabava de mudar de roupa e punha a pulseira Power Balance em frente ao espelho com a foto das filhas e uma cruz, quando nos recebeu e encaminhou para a varanda do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Durante 45 minutos, falou sem parar. Sempre sem conseguir evitar as emoções nem as lágrimas nos olhos.
Acha-se parecida com Blanche DuBois - a personagem principal da peça "Um Eléctrico Chamado Desejo"?
Era inevitável sentir que as pessoas me iriam colar a ela. A questão da idade, de estar só e de a imprensa cor-de-rosa me ter atribuído inúmeros namorados - aliás mereciam um prémio pelo número impressionante de romances. Tive muito receio, conversei com o Diogo [Infante] e com os outros actores [Albano Jerónimo, Lúcia Moniz, Pedro Laginha]. Mas com o trabalho fui-me sentido cada vez mais saudável comparada com a Blanche.
Demorou 12 anos a voltar ao teatro. Porquê só agora?
Foi o braço do Diogo que me tirou de um caminho de que não achava que ia conseguir sair. Deixar a televisão ia ser difícil. Ele ajudou-me de outra forma. Disse-me: "A razão mais forte para não fazeres teatro estes anos todos passa muito pelas tuas filhas. Esse deve ser um dos primeiros obstáculos a ultrapassar." Por isso, fez questão que elas viessem assistir a um ensaio da peça.
Ele já a tinha convidado antes?
Sim. Quando o Diogo estava no Teatro Maria Matos. Mas ele tem um lado encantador e pragmático. Quando percebia que eu tinha outro trabalho, ou alguma dúvida, dizia "não" antes de mim. Poupava-me de fazer uma coisa que me custa tanto.
Custa-lhe dizer "não"?
Sempre fui assim. Quando o meu irmão, o meu ídolo [Pedro Pedrosa, um ano mais velho] me convidava para jogar à bola com os rapazes e me pedia para ir para a baliza, não era capaz de recusar. Ninguém queria ser guarda-redes. Apanhava grandes boladas, magoava-me, mas não dizia "não".
As suas filhas já a viram nesta peça. O que acharam?
A mais velha [Margarida, 14 anos] vive isto de forma mais empolgada, já contou a peça toda aos amigos, apesar de lhe dizer que não podia. Até tentou passar umas cenas comigo [decorar falas da peça], mas fazia tantas perguntas que não passávamos da mesma cena. Quer muito ser actriz. Ainda não percebi se tem talento ou só jeito. É muito nova. Não a deixaria trabalhar agora, não ia ser bom. Ela diz que vai ver a peça todos os fins-de-semana com os amigos. É assim um bocadinho exagerada, uma características das actrizes. A mais nova [Catarina, 12 anos] é mais desligada. É surf, computadores. Agora diz que quer ser fotógrafa. O que a fascinou na peça foi o jogo de luzes na tela.
Depois do sucesso das novelas, poucos se recordam da Alexandra no teatro.
As pessoas já se esqueceram e há uma geração que nunca me viu nos palcos. Uma vez um jornalista perguntou-me: "Oh, Alexandra, e não pensa em fazer teatro?" Eu respondi: "Olhe, já fiz 38 peças de teatro."
Quando é que percebeu que queria ser actriz?
Sempre quis. Mas nunca fui levada a sério, nem apoiada pela família. Fazia teatros em casa, com os primos. Escrevia as peças e encenava-as, mas depois os miúdos fugiam de mim.
Porquê?
Oh, eu queria fazer uma coisa muito a sério e eles queriam era brincar. Começavam a rir e eu ficava danada.
Acabou por ir para filosofia.
Naquela altura só havia o Conservatório Nacional e outra escola, mas era preciso fazer primeiro o 12º ano. Fui-me desiludindo um bocadinho e optei por Filosofia. Era uma das minhas disciplinas preferidas. Os meus pais achavam que devia procurar uma profissão que me desse mais estabilidade. Como tinha uma sede de justiça muito grande, o meu pai achava que devia ir para Direito. Sendo eu uma pessoa com tantas dúvidas, fui para filosofia à procura das respostas e da verdade. Na faculdade conheci um grupo de psicologia que fazia teatro e foi nessa altura que comecei a representar.
Como foi subir ao palco?
Foi horrível. Numa das primeiras vezes que actuei com o grupo "No pote das ginjas", fomos a um encontro de teatro universitário e levamos com tomates. Não achava possível que as pessoas tivessem levado mesmo tomates. Rimos imenso. Havia uma adrenalina inexplicável. A única coisa que sabia era que me faltava técnica, por isso fui para o conservatório.
E é lá que lhe dão o nome de Estrelinha de Belém?
Estávamos numa fase pós-revolução. O pensamento era: "Sou actor, logo não tenho artifícios. Sou natural e tenho o meu cheiro." Sim, mas um banho não faz mal. Como morava no Restelo e ia para as aulas de corpo de maillot cor-de-rosa, de fita na cabeça, blush e rímel. Achavam-me a maior fútil do mundo. Fui logo catalogada a Estrelinha de Belém. Alguns professores também gozavam comigo, mas depois tinha o professor Eurico de Lisboa, que era um santo, me ensinou tanta coisa. Ele dizia-me que eu era uma louca sensata, uma mistura muito boa para uma actriz.
Era boa aluna?
Era aplicada e participava muito nas aulas. Quando me corria mal uma prova escrita pedia logo uma oral. Tinha sempre 16 e 17. Mas passei uma adolescência com muitas crises existenciais. Sempre a pensar: "porque estou aqui e não ali". Viajava de comboio para ir estudar na casa de um colega e aquela viagem fazia-me viajar para outros mundos. Ficava meio perdida.
Pensou em ser freira?
Sim. Agora também pensei nisso, se isto correr mal vou para as carmelitas descalças [risos]. Sou católica, embora tenha ficado triste com a instituição Igreja. Não sou uma fiel praticante, mas rezo todos os dias. Acho que queria ser freira para fugir à realidade. De certa forma, ser actor também o é.
Como lida com a fama e com o facto de toda a gente a reconhecer na rua?
Como sou pequenina, se for de ténis e boné na cabeça e nada de glamour, posso ir a qualquer hipermercado que ninguém me conhece. Mas ser reconhecida é muito simpático. O Raul Solnado dizia uma coisa engraçada: "as palmas são afrodisíacos". Uma senhora chegou a dizer-me que eu a inspirava, que tinha passado por coisas semelhantes, que se tinha divorciado na mesma altura, tinha duas filhas, e que de cada vez que me via a trabalhar, tinha forças para o fazer. É certo que também há quem nos diga coisas horríveis, tipo: "Você não presta".
Já lhe disseram isso?
Sim. Chegaram a dizer-me: "Odeio vê-la nesses papéis. Não faça mais novelas". Acho que o público tem direito à sua opinião. Estamos a passar na rua, somos públicos.
Teve fãs a perseguirem-na?
Sim, mas coisas leves. Já tive de mudar de telemóvel, só isso.
Este mês faz 45 anos, já fez muitas produções fotográficas sensuais. Sente-se bem com o passar do tempo?
Isso das fotografias é tudo photoshop. Não lido bem com o passar do tempo. Tenho pena de já não ver tão bem, não ter tanta energia. Há uma certa decrepitude que me assusta e que é real. A pior de todas é intelectual. No lado das rugas, estou-me a borrifar. Qualquer dia se puder e tiver oportunidade financeira faço qualquer coisa, nomeadamente puxar estas pálpebras para cima. É uma coisa genética. O meu pai, o meu irmão e a minha filha mais velha têm todos. É do lado dos Pedrosas. Acho que isso baixa muito o olhar.
Não tem medo de o fazer?
Não. Às vezes levanto-me de manhã e digo: "Que horror". Lembro-me de uma frase da Blanche: "Nunca a luz do dia mostrou uma ruína tão completa". Às vezes sinto-me assim. Quando me levanto e olho ao espelho... Mas é só pele. Cá dentro ainda há um coração a bater cheio de força e fé.
Teatro Nacional D. Maria II
"Um Eléctrico Chamado Desejo", de Tennessee Williams
De Quarta a sábado às 21h30 e Domingo às 16h00
Preço: 7,5€ a 30€.
por Vanda Marques , Publicado em 04 de Setembro de 2010
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