A biografia ‘Salazar’ desmonta alguns mitos sobre o ditador. Foi o primeiro a pedir a adesão de Portugal à actual união europeia.
Senhor presidente, "hoje não apanhei o eléctrico, vim a correr atrás dele e poupei oito tostões" - disse o funcionário público, um contínuo, a querer agradar a Oliveira Salazar. O ditador respondeu de imediato: "fez bem, mas se viesse atrás de um táxi teria feito melhor, porque poupava vinte escudos e chegava mais cedo".
O historiador Filipe Ribeiro de Meneses, autor da biografia ‘Salazar', lembra à Domingo esta "piada clássica" que terá sido escrita pela escritora francesa Christine Garnier, contando obviamente com a permissão do presidente do Conselho. O que prova que o próprio sabia das anedotas que se contavam sobre ele - e até as aproveitava para consolidar o poder.
O EQUILIBRISTA
Ribeiro de Meneses escreveu uma biografia de Salazar num só volume que é considerada fundamental para compreender o político que governou Portugal ao longo de quase meio século. Muitos não sabem, por exemplo, que foi Salazar quem pela primeira vez tentou aproximar Portugal da actual União Europeia, antiga Comunidade Económica Europeia (CEE).
O pedido remonta a 1962, quando o país pede o estatuto de associado, prometendo preparar-se no espaço de 15 anos para a adesão à Europa. Ribeiro de Meneses reconhece não perceber o que "estava a passar pela cabeça" de Salazar para "pensar que, em 15 anos, com as instituições políticas que existiam, com as colónias, iria pedir a entrada" num clube de países democráticos. "Teria de haver uma mudança brutal em Portugal" acrescenta.
Com esse estatuto de associado, Salazar sabia que a questão da democracia teria de ser discutida. Porém, o presidente francês, o general De Gaulle, veta a adesão da Inglaterra à CEE - e já nem se discute a possibilidade da entrada de Portugal, que fica na EFTA com o velho aliado britânico.
A biografia desmonta alguns dos mitos sobre o ditador. A ideia de que se tratava de um político que nunca mudou de rumo ou que sabia exactamente qual o caminho que Portugal deveria seguir. Na biografia, aparece um homem cauteloso, que geria as diversas facções, mas que mudou várias vezes de trilho durante os 40 anos no poder. Só um verdadeiro equilibrista conseguiria manter a neutralidade do país durante a II Guerra Mundial.
Nunca teve simpatia por Hitler e pouco ou nada tinha a ver com os fascismos europeus. De origem modesta, escreve o autor, Salazar não se destacou pela bravura no campo de batalha, ou por uma oratória demagógica, mas pelas suas proezas académicas, o que o distingue de Franco, Hitler ou Mussolini.
O autor recusa-se a julgar o ditador: "com quarenta anos, como eu tenho, é muito difícil julgar um homem que está no poder até aos 80 anos. É preciso ter os 80 anos dele para perceber a vontade que Salazar tem de ficar no poder até ao fim da vida. Não o posso julgar do ponto de vista humano".
ENTREVISTA
Filipe Ribeiro de Meneses retrata um ditador ambíguo, que sabia manobrar para se impor
Salazar criou uma imagem política, que não era real - a D. Maria, a horta, os animais. O ditador foi um percursor da comunicação política?
Afonso Costa também já tentara criar uma imagem, mas Salazar tinha a vantagem de contar com a censura e com o Secretariado de Propaganda Nacional, sob o qual exerce alguma tutela, tem toda a confiança em António Ferro e defende a sua acção.
Salazar percebe a importância da imagem...
Percebe perfeitamente. A legitimidade de que dispõe depende da imagem, ele governa porque é "o melhor". O facto de ser "o melhor" tem de ser transmitido aos portugueses, para não se preocuparem com a política. Ele não quer que os portugueses liguem à política, quer que pensem na vida deles, que trabalhem e obedeçam, mas entreguem a política a Salazar.
Quem era realmente Salazar?
Era alguém com uma enorme apetência para o poder. Ele queria governar e acreditava ter uma missão providencial. Para Salazar, o que é mais importante sempre é mostrar as suas raízes, que é nascido do povo, com as raízes na terra. Há uma passagem do livro ‘Férias com Salazar' muito interessante, em que diz a Christine Garnier: "a senhora fazia bem em cumprimentar as pessoas por quem passa, a senhora viajou meio mundo mas eles são dignos do seu respeito também". O livro quer mostrar isso: que Salazar é um homem culto, sofisticado, mas que mantém a ligação ao povo e à terra.
Na biografia, Salazar aparece como um político ambíguo...
O Estado Novo era um equilíbrio, havia muitas forças, muitas correntes. Salazar sabe que não pode deixar nenhuma delas cair, ou tornar-se demasiado poderosa. A questão dos monárquicos é paradigmática e na correspondência com Marcelo Caetano sente-se isso, quando diz que "não devemos dar aos monárquicos a impressão que já não os queremos, temos de os manter sempre na ilusão..."
No livro fala de uma ameaça monárquica...
Sim, se os monárquicos entendessem que estava fechada a porta da restauração, retiravam o apoio. Deixavam Salazar entregue à facção republicana e ele não queria ficar nas mãos de nenhuma das facções, não queria ser propriedade de nenhuma delas e precisava de ter uma contra a outra. Há uma ameaça monárquica como há uma ameaça republicana, como houve uma ameaça fascista...
Escreve também que Salazar não era o Estado Novo...
Havia um equilíbrio num regime que lhe foi entregue pelo exército, pelo marechal Carmona, mas a que nunca conseguiu imprimir um cunho pessoal. Exageram-se as certezas de Salazar: ele sabia mais o que não queria do que o que queria. Não queria um regime parlamentar, não queria um regime de esquerda. Queria tentar controlar o desenvolvimento do regime e de Portugal do que dirigi-lo numa certa direcção. A direcção vinha de outros e vinha de fora. Não vinha de Salazar.
Salazar era ziguezagueante, como se diz hoje?
Era ziguezagueante, há alturas em que se vê claramente que não sabe o caminho a seguir. Depois da II Guerra Mundial, entre 45 e 47, não sabe qual é o futuro da Europa nem sabe qual é o futuro do Estado Novo. Fala de "eleições tão livres como na livre Inglaterra" - mas depois não as faz. Em termos económicos, há anos de grande indecisão porque não se sabe o que vai acontecer à Europa.
O ditador detestava a expressão ‘salazarismo'...
No momento em que se usasse o termo ‘salazarismo' como uma doutrina, deixaria de poder evoluir. Quando o fiel ‘Diário da Manhã' começa nos anos 30 a escrever artigos sobre o salazarismo, Salazar chama-os à ordem e escreve ao director do jornal a perguntar: "mas o que é isso do salazarismo?".
Fala, a certa altura, das piadas sobre Salazar...
Há muitas piadas que se contam e que o próprio Salazar conhecia. Há uma clássica, que, salvo erro, é a própria Christine Garnier que a cita, o que quer dizer que não se importava que contassem piadas sobre ele. Provavelmente ria com as piadas porque tinha sentido de humor.
"SALAZAR JÁ NÃO SERIA HOJE ACEITÁVEL"
Por que é que Salazar continua a vender tanto, mais de trinta anos depois da democracia?
Salazar marcou mais Portugal do que qualquer outro político. De certa forma, estamos a viver ainda as consequências dos anos de Salazar no poder.
Seria possível um Salazar hoje na política portuguesa?
Salazar governa um país em que a maior parte dos portugueses não ligava à política, o que já não é o caso. O que ele queria era que as elites portuguesas lhe deixassem a iniciativa. Esse cenário já não seria aceitável.
O ditador é uma consequência da I República?
Em parte, é. Os antecedentes do golpe de 1926 que vai dar ao Estado Novo tem a ver com o falhanço da I República - e esse fracasso está em parte ligado à experiência da Grande Guerra.
Há razões para comemorar a I República ou festejar a memória de políticos como Afonso Costa?
Festejada não diria, mas entendida sim. Não se entende o século XX português sem se entender a I República. Penso que os historiadores que se dedicaram ao estudo da República em 2010 já o fazem há muito tempo. O que têm agora é uma audiência e uma urgência maiores.
PERFIL
Filipe Ribeiro de Meneses, professor de História na Universidade Nacional da Irlanda, 40 anos, é o autor do livro ‘Salazar'. Tirou o doutoramento no Trinity College de Dublin. Filho de um diplomata, viveu grande parte da vida no estrangeiro.
CORREIO DA MANHÃ 12-09-2010
Por:Paulo Pinto Mascarenhas