Advogados usam lei para anular processos > DNInvestigação criminal. Há uma lei que define as competências de investigação criminal de cada polícia mas o Ministério Público pode contorná-la, atribuindo processos à polícia que entender. Os advogados já viram nisso um argumento para pedir a nulidade das investigações.
Investigada pela PSP, a "Operação Chicote" levou à acusação de 21 arguidos pelos crimes de associação criminosa, burla e falsificação de documento num esquema que envolve viciação de viaturas. O caso está parado e o julgamento dependente do Tribunal da Relação de Lisboa, que deverá decidir se a PSP tinha ou não competência para investigar. À luz da Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), só a Polícia Judiciária poderia fazê-lo.
Nos últimos anos, vários advogados têm posto em causa o não cumprimento da LOIC, procurando, assim, a nulidade dos processos. Mas, afinal, a lei que estabelece as competências de investigação para cada polícia (ver caixa) é para cumprir ou é um diploma inútil - já que o MP, como titular da acção penal, pode escolher com quem trabalhar?
No caso do recurso da "Operação Chicote" para a Relação, o trunfo do advogado Manuel Antão foi um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República: "A Procuradoria deu um cariz processual à LOIC e não considerou que este diploma tenha apenas um carácter administrativo, organização entre as polícias", avançou o advogado ao DN.
Assim, caso a Relação considere que a LOIC não é um mero regulamento administrativo, o processo pode ser nulo. "A PSP só tinha competência para investigar nestes pressupostos: depois de ouvido o procurador-geral da República e o director nacional da PJ", diz.
O mesmo tentou Lígia Borbinha no início do julgamento dos No Name, em Março, pedindo a nulidade da acusação, por o crime de associação criminosa ter sido investigado pela PSP e não pela PJ.
O juiz remeteu resposta para a leitura da sentença. E decidiu que a questão não se colocava porque "a investigação iniciou-se para o apuramento de diversos factos, de natureza e incidência criminal diversa", e evoluiu "até terminar com um raciocínio acusatório" da associação criminosa, lê-se no acórdão da sentença.
Para o advogado Heitor de Carvalho, que trabalhou no caso com Borbinha, este argumento de nada serve. "O crime de associação criminosa deve ser devidamente investigado e não resultar de um amontoado de crimes", diz ao DN.
Assim "viola-se a LOIC como muito bem se entende, porque afinal a lei nada prevê para situações em que exista violação de competências exclusivas", diz. E critica: "Talvez seja altura para de forma consciente o MP analisar que resultados práticos e mais-valias para o sistema judicial tem obtido com este seu entendimento da LOIC, usando a PSP como polícia de investigação e não a PJ."
Já em 2009 o procurador-geral, Pinto Monteiro, emitiu um despacho declarando a exclusiva competência da PJ para investigar os assaltos "com recurso à violência física ou executados com armas de fogo" a gasolineiras.
Cinco casos de competências trocadas entre polícias
Decisão. Há processos que foram contestados em sede de julgamento, outros não. Advogados reclamam jurisprudência.
Nos últimos anos, alguns advogados já tentaram anular determinados processos pondo em causa o órgão de polícia criminal que os investigou. Até agora, nos tribunais superiores tem prevalecido o entendimento de que o Ministério Público, enquanto titular da acção penal como refere a Constituição, pode escolher qual a polícia que vai investigar, independentemente dos crimes em causa. Ou seja, para os tribunais da Relação, a Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC) tem, apenas e só, um carácter administrativo, de organização entre as polícias, sem quaisquer efeitos na autonomia do MP. Porém, na justiça portuguesa as surpresas podem surgir a qualquer momento.
Sendo certo que já existe um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República a considerar que a LOIC deve ser respeitada pelo MP quando abre um inquérito (ver texto nesta página). Os advogados reclamam jurisprudência na matéria, até lá vão interpondo recursos na tentativa de anular processos.
'Operação Chicote'Processo investigado pela PSP em que estão em causa suspeitas de associação criminosa, burla e falsificação de documento - crimes que terão sido praticados por 21 pessoas, suspeitas de se dedicarem à viciação de automóveis. O julgamento foi iniciado, mas parou devido a um recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Um advogado pôs em causa a competência da PSP para investigar. A acusação deste processo partiu da equipa coordenada pela Unidade Especial de Combate ao Crime Especialmente Violento do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, estrutura liderada pela procuradora Cândida Vilar. As opções desta magistrada pela PSP em detrimento da PJ têm, aliás, causado alguns atritos entre a Judiciária e o Ministério Público.
Caso No NameO colectivo de juízes do Tribunal Criminal de Lisboa determinou 13 penas efectivas, oito absolvições e 16 condenações com penas suspensas para os arguidos da claque No Name Boys. Dos 13 condenados a prisão efectiva, a maior pena foi aplicada a António Claro, (12 anos), seguida da de Hugo Caturna (oito) e José Ferreira (sete). Os 37 arguidos do julgamento, que começou a 2 de Março, e tem 16 processos conexos, estavam indiciados da prática dos crimes de associação criminosa, tráfico de droga, posse de armas brancas e de guerra e outros ilícitos. O crime de associação criminosa caiu. Foi a PSP quem investigou por ordem da Unidade Contra o Crime Especialmente violento do DIAP de Lisboa.
'Gangue do multibanco'Dois anos de assaltos a multibancos e fuga bastaram para que o MP atribuísse à GNR a investigação do "gangue multibanco". Os militares conheciam as alcunhas de cada um dos suspeitos e conheciam todos os seus passos e o seu funcionamento. Mas o colectivo de juizes de Lisboa, presidido por Nuno Ivo, não entendeu assim. Considerou não haver prova suficiente e absolveu onze dos 12 acusados do processo conhecido por "gangue do multibanco".
Apenas um arguido foi condenado a dois anos e meio de cadeia por tráfico de droga e posse de arma ilegal. Os outros, que estavam em preventiva, foram imediatamente libertados. O Ministério Público não aceita a decisão e vai recorrer para o Tribunal da Relação.
Pedófilo de Monte Abraão
É o reverso da medalha. O Público entregou a investigação sobre um suspeito de pedofilia em Monte Abraão, Sintra, à Polícia Judiciária. Ao fim de poucas semanas de vigilância, a Judiciária nada concluiu. O caso passou para uma equipa de investigação criminal da PSP, que, depois de montar um dispositivo de vigilância no terreno, conseguiu localizar o suspeito, assim como radiografar todos os seus movimentos, contactos, círculo de amizades, e identificar as vítimas. Quando foi detido, o homem acabou por confessar os crimes, pedindo tratamento psicológico.
Corrupção na PSPPerante a Lei de Organização da Investigação Criminal, os crimes sob suspeita numa rede que se dedicava à legalização de armas de fogo, com ramificações no interior da PSP, teria de ser investigado pela PJ. Porém, o "bom senso", segundo fontes do MP, levou a que fosse a própria PSP a investigar um crime dentro da sua casa. Nas fases seguintes do processo, alguns advogados tentaram pôr em causa a investigação feita pela PSP, alegando que esta não tinha competência, mas o Tribunal da Relação de Lisboa não lhes deu razão.
Procuradores defendem papel liderante do Ministério PúblicoHá, de facto, uma lei que estabelece as competências das polícias, mas o Ministério Público é, perante a Constituição da República, o titular da acção penal, logo, pode escolher quem o coadjuva nas investigações. Esta é, em resumo, a posição de procuradores do Ministério Público questionados pelo DN sobre a polémica da LOIC.
"Perante a lei, a competência para investigar um crime é do Ministério Público. As polícias só investigam crimes quando esta competência lhes é delegada", começou por dizer Rui Cardoso, secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP).
Acrescentando que, "apesar de a LOIC prever uma série de competências entre polícias, não está prevista qualquer consequência para uma eventual infracção. E, no Processo Penal, também não está prevista nenhuma nulidade em virtude disso".
Na prática, os procuradores escolhem quem está mais disponível para seguir uma investigação, é o que refere ao DN um responsável do Departamento de Investigação e Acção Penal, que prefere manter o anonimato. "Se é preciso avançar com uma busca, o pessoal da PSP e da GNR, por ter mais efectivos, está mais disponível", argumenta.
Também o conhecimento do terreno abona a seu favor. Paulo Rodrigues, da Associação Sindical de Profissionais de Polícia, lembra "que 70% da informação policial recolhida no terreno é feita pela PSP". Por outro lado, quem investiga os pequenos crimes e acompanha, por exemplo, os bairros problemáticos reconhece os suspeitos pelas alcunhas e por todas as suas ligações suspeitas.
O que é uma mais-valia.
"Existe uma lei que é para ser cumprida"POLÍCIAS A Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal (ASFIC) não tem dúvidas: "Existe uma lei, goste-se ou não, é para ser cumprida", disse ao DN o presidente Carlos Garcia, a propósito das polémicas à volta da Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC).
Este sindicato tinha já alertado para o deficiente entendimento entre PJ e Ministério Público devido ao não cumprimento da LOIC: "O problema fundamental do relacionamento PJ/MP é o consentimento tácito ou não por parte do MP, à revelia da LOIC, de muitas iniciativas de investigação da PSP e da GNR, em crimes que são claramente da competência da PJ."
Para Paulo Rodrigues, presidente da Associação Sindical dos Profissionais de Polícia, a criação da LOIC serviu para definir fronteiras, mas "continuam a existir falhas". "Pode um suspeito que roubou com uma faca estar a ser investigado pela PSP e depois roubar com uma arma de fogo e estar a ser investigado paralelamente pela PJ", refere. Por outro lado, a PSP e a GNR "estão mais bem preparadas na investigação criminal e é normal que o MP lhes atribua processos, por disporem de mais recursos humanos". "E a LOIC devia ser mais flexível nisso", diz.
Já José Manageiro, da Associação Profissional da Guarda, revela que com "a competição entre polícias" se esquece "o combate à criminalidade". "Não percebo porque há tantos órgãos de investigação criminal e tantas polícias num país com dez milhões de habitantes", disse ao DN.
Publicado no Diário de Notícias a 5 de Julho de 2010
RECORTES DE IMPRENSA - ORDEM DOS ADVOGADOS