
Depois de um breve e turbulento reinado, Dom Manuel II foi expulso do país. Tinha 21 anos, quando procurou o exílio britânico. Mantinha-se bem informado sobre tudo o que acontecia em Portugal e trabalhava na sua magnífica biblioteca. Em Twickenham continuou a ser O Rei Saudade.
Na última carta que escreveu ao Marquês do Lavradio, a 4 de Junho de 1932, Dom Manuel II assumia estar "estafado". Prosseguia o seu trabalho "por Portugal" - um catálogo de livros antigos portugueses que seria editado em três volumes -, mas o cansaço não se devia apenas ao estudo bibliográfico, que iniciara, alguns anos antes, em Fulwell Park, Twickenham (o lugar onde a mãe havia nascido), não muito longe de Londres. A mansão onde escolhera viver com a sua mulher, Dona Augusta Vitória (que era sua prima, neta da infanta Dona Antónia de Bragança e filha do Príncipe Guilherme de Hohenzollern), desde 1913, tinha sido assaltada. Os ladrões levaram as pratas, miniaturas, quadros, bibelôs e quase todos os objectos que estavam na vitrina da sua magnífica biblioteca. Triste e desgastado com o acontecimento, escreveu a Lavradio que ponderava passar uns dias em Vichy, "para uma cura". Valiam-lhe, porém, as lembranças do seu encontro com o Papa Pio XI, em Março, que lhe tinha dado "provas excepcionais de consideração e carinho". E concluía: "Não me posso esquecer que há quase um quarto de século que sou Rei!"
Era Rei sim, mas sem trono há mais de 20 anos. E a breve experiência do seu reinado (cerca de dois anos, de 1908 a 1910) arrastara consigo a memória da tragédia dos assassinatos do seu pai, Dom Carlos, e do seu irmão, o Príncipe Luís Filipe, e fora condicionada pela sua juventude (19 anos) e pela poderosa influência da mãe, a Rainha Dona Amélia. Quando escreveu a carta a Lavradio, nesse início de Verão de 1932, Dom Manuel sabia que Portugal não mais retornaria ao regime monárquico (essa possibilidade só chegou a adquirir algum fôlego nos primeiros anos da República, com as incursões monárquicas de Paiva Couceiro) e aquilo que lhe restava era a saudade. E o sentimento de não ter sido compreendido. "Em Portugal, meu amigo, é preciso morrer para que nos façam justiça, para que digam bem de nós", disse a António Ferro, em entrevista ao Diário de Notícias, a 7 de Dezembro de 1930.
A 3 de Julho a urna com os restos mortais do Rei foi transportada para a catedral de Westminster, onde foi realizado um serviço fúnebre ao qual compareceram Reis e representantes das Casas Reais europeias. Depois, o caixão foi conduzido pelas ruas de Twickenham, então pejadas de crianças das escolas locais, até à Igreja de St. Charles Borromeo, em Weybridge, onde se manteve até ser levado, por mar, para o mausoléu de S. Vicente de Fora, a 2 de Agosto. Enquanto em Westminster decorria o requiem, Lisboa acordava com apelos, na imprensa, para que o Governo aceitasse o último desejo do Rei - ser sepultado ao lado do pai e do irmão. "Não pretendemos iluminar Dom Manuel com a chama do "sol dos mortos", que sempre redime defeitos, exaltando virtudes. Desejamos apenas fazer justiça a um homem - a um vencido", lia-se no republicano Diário de Lisboa. Alguns dias depois da morte do Rei, a 10 de Julho, o Governo comunicou, em nota oficial, que resolvera tomar a "iniciativa da trasladação", anunciando ainda um programa de cerimónias. Na manhã de 2 de Agosto o cruzador britânico Concord, que transportava a urna do Rei, entrou no Tejo, onde o aguardavam várias flotilhas. Aportou no Terreiro do Paço sob uma salva de tiros e ao aparato militar juntou-se uma multidão vestida de preto. Quando os marinheiros portugueses receberam da Armada britânica o caixão, colocando-o sobre uma carruagem ladeada por soldados, já todas as janelas, varandas e até telhados dos ministérios estavam lotados. Na praça, vendedores ambulantes apregoavam retratos do malogrado rei. E no trajecto até à Igreja de S. Vicente de Fora - a pé, à frente do cortejo, seguia o Governo - houve quem colocasse colchas azuis e brancas às janelas.
Exilado e Pobre - Dom Manuel (1889-1932) não fez uma transição serena para a idade adulta. Tudo se precipitou na sua vida após o regicídio - cerca de três meses após a morte do pai e do irmão foi aclamado Rei, com apenas 19 anos, tendo assistido, impotente, ao desgaste e agonia da Monarquia Constitucional; e dois anos depois a revolução republicana destinou-lhe o exílio e converteu-o no último monarca de Portugal. Na tarde de 5 de Outubro de 1910, após ter sido transportado da praia da Ericeira pela barca Bom Fim até ao iate Amélia, onde estava já a sua mãe e a sua avó, Don Maria Pia, escolheu o abrigo do seu camarote para expressar a sua mágoa. Fê-lo através de uma carta cujo conteúdo não chegou a ser publicitado, como era seu desejo. Endereçada a Teixeira de Sousa, presidente do Conselho, a missiva sublinhava a dedicação de Dom Manuel às suas funções e invocava reconhecimento: "Sou português, e sê-lo-ei sempre. Tenho a convicção de ter sempre cumprido o meu dever de Rei em todas as circunstâncias e de ter posto o meu coração e a minha vida ao serviço do meu país. Espero que ele, convicto dos meus direitos e da minha dedicação, o saberá reconhecer. Viva Portugal! Dê a esta minha carta a publicidade que puder." Fora expulso da pátria, mas acreditava que não tardaria a ver restaurada a Monarquia portuguesa. Em Dezembro desse ano, quando já estava instalado em casa do seu tio materno, o Duque de Orleães, em Woodnorton, na cidade britânica de Evesham, o New York Times noticiava que Dom Manuel tinha esperança de lhe ser restituído o poder. O jornal citava um português que pedira anonimato, alguém próximo do núcleo do Rei exilado, e que assegurava que Dom Manuel estava "pobre" e, consequentemente, impossibilitado de escolher um lugar para residir, sendo obrigado a aceitar a hospitalidade do tio. Durante três meses (de Outubro a Dezembro), continuava a mesma fonte, não teve meios para pagar aos seus próprios criados.
Nos primeiros meses de 1911, porém, Dom Manuel conseguiu reequilibrar as suas finanças. O Governo republicano concedeu-lhe uma pensão mensal de 1180 libras (paga com retroactivos a Outubro de 1910) e aceitou enviar-lhe alguns bens da Casa de Bragança, nomeadamente móveis, louças, pratas e quadros. Foi nessa altura que o Rei e a sua Mãe decidiram alugar uma casa nas proximidades de Londres. Escolheram a Abercorn, em Richmond, uma residência com dois pisos, já mobilada, que possuía, para agrado do rei, uma biblioteca e um piano. Enquanto o monarca procurava adaptar-se ao desterro britânico, em Portugal as diversas correntes monárquicas conspiravam pelo derrube da República. Mas o mentor da contra-revolução monárquica, líder de duas incursões armadas no Norte do país (em 1911 e 1912), Henrique de Paiva Couceiro, não tinha qualquer simpatia por D. Manuel. E o sentimento era recíproco. Após o golpe falhado de 1911, que não teve a aprovação do Rei, Paiva Couceiro, atento ao facto de Dom Manuel já não possuir qualquer apoiante dentro do exército português, optou por uma estratégia que deu resultados: pediu a cada um dos seus oficiais, refugiados na Galiza, tal como ele, para declararem, por escrito, se aceitavam ou não a sua liderança numa futura incursão em Portugal. A resposta afirmativa de todo o contingente revelou-se a melhor arma para obrigar Dom Manuel a financiar uma segunda tentativa de restaurar a Monarquia (que resultou falhada) e assumir um acordo com os miguelistas. A mais recente historiografia contesta os termos do entendimento, designado Pacto de Dover, no qual D. Manuel II terá acordado o direito de sucessão a Dom Duarte Nuno, filho de D. Miguel II, na eventualidade de morrer sem deixar descendência. Sobre este alegado pacto existe apenas a confirmação do encontro entre os dois primos no Hotel Lord Warden, em Dover, em Janeiro de 1912. Quando irrompeu a Primeira Guerra Mundial, Dom Manuel, assumindo estar ao lado dos intervencionistas portugueses, pediu a suspensão das insurreições monárquicas (que ainda prosseguiram, embora rapidamente debeladas). Numa carta datada de 15 de Agosto de 1914 e enviada ao seu lugar-tenente, João de Azevedo Coutinho, escreveu: "Devemo-nos unir, todos os portugueses, sem distinção de causa ou de cor política, e todos trabalhar para manter a integridade da nossa querida Pátria, quer servindo em Portugal para defender o nosso país, quer combatendo nas fileiras do exército aliado. (...) Que os monárquicos portugueses saibam mostrar neste momento angustioso que, acima de tudo, põem a luta da Pátria e a defesa do solo sagrado. Por meu lado, já me ofereci a S. M. o Rei de Inglaterra para tudo o que possa ser útil à tradicional aliança que data de seis séculos." Enquanto em Portugal evoluía a luta entre apoiantes e não apoiantes da intervenção portuguesa, alastrada agora aos monárquicos (alguns leram na carta do Rei uma legitimação da República e uma renúncia ao trono), D. Manuel participava activamente no apoio aos feridos de guerra, visitando hospitais e tornando-se membro da Cruz Vermelha britânica. Com o seu dinheiro mandou construir um hospital de sangue, localizado nos arredores de Londres. Em Janeiro de 1916, em carta a Lavradio, dizia que só saía de casa por causa da "política, guerra, hospitais e Cruz Vermelha". Mas arranjava sempre algum tempo para "jogar ténis".

Fonte:Jornal Público de 21-08-2010
Por Maria José Oliveira.
NÚCLEO MONÁRQUICO DE ABRANTES
Terça-feira, 7 de Setembro de 2010
Mansão de Fulwell Park, em Twickenham, foi a última casa de Dom Manuel II, último Rei de Portugal.
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