No dia em que a República faz 100 anos, Cavaco Silva passa a tarde a falar na Fundação Champalimaud. O gesto é cheio de significado: apesar de muitos conflitos, Champalimaud foi um protegido dos governos da ditadura e da democracia. Era o homem mais rico de Portugal na queda do Estado Novo e voltou a sê-lo no fim da vida, beneficiando do processo de privatizações. A 5 de Outubro, sob o signo de Champalimaud, Cavaco escolhe celebrar a República do capital.
Artigo 4 Outubro, 2010 - 01:11 Por Jorge Costa
António Champalimaud – foto de Alfredo Cunha/Lusa (arquivo)
Nascido em 1918, Champalimaud perde o pai aos 19 anos. Carlos Champalimaud era membro do Conselho Fiscal do Banco Comercial, importador de ferro e aço pela sua Companhia Geral de Construções e, depois de casar com uma filha de Henrique Sommer, tornou-se proprietário da Quinta da Marinha, de algumas quintas no Douro, de roças em São Tomé e de minas de cobre no nordeste de Angola. Mas a situação financeira da família Champalimaud é complexa, com dívidas ao seu banco que ascendem a 13 mil contos, no seguimento do embargo da linha de caminhos-de-ferro Luanda-Ambaca, em cuja construção esteve envolvido. O filho primogénito, António, lançou-se cedo nos negócios e recebe mesmo um primeiro empurrão com o crédito do banqueiro Ricardo Espírito Santo (Pedro Jorge Castro, Salazar e os Milionários, 2009).
E tinha pressa. Aos 24 anos, António passa a fazer parte da administração da Empresa Cimentos de Leiria (ECL), do seu tio Henrique Sommer. Os Sommer eram descendentes de Henry, Barão de Sommer, alemão imigrado em Portugal, e dedicavam-se ao cimento e ao ferro: a família fundara em 1920 os Cimentos de Leiria e três anos depois introduzira no país a técnica do cimento Portland. Em 1935, comprara os Cimentos Tejo, passando a dominar o mercado nacional. Era também dono de interesses no algodão, metalomecânica e calçado, numa estratégia de diversificação que viria a ser o padrão dos principais grupos portugueses. Quando morre, em 1944, Henrique deixa ao sobrinho, António Champalimaud, a herança que será o início da sua fortuna.
Já presidente dos Cimentos de Leiria, Champalimaud posiciona-se para uma rápida acumulação. 1944 é também o ano do seu casamento com Cristina de Mello, filha de Manuel de Mello, neta de Alfredo da Silva. O sogro convida-o para dirigir a empresa de navegação do grupo, a Sociedade Geral, e garante-lhe o crédito da Casa José Henriques Totta, o banco da CUF. António quer comprar ao BNU a fábrica de cimentos da Matola, perto de Lourenço Marques, e move influências: o sogro pede a Salazar a preferência para o genro e Champalimaud consegue-a através do secretário pessoal do ditador, Alexandre Ribeiro da Cunha, seu amigo.
Caso Sommer: protecção e perseguição?
Em 1944, Champalimaud defronta-se com a oposição dos outros accionistas da Cimentos de Leiria, que não concordam com a compra da Matola. Champalimaud pede então às tias as suas acções da ECL como penhor de um novo empréstimo do Totta. Entre a declaração testamentária do tio Henrique, que beneficiaria os sobrinhos, e uma carta posterior, a favor das irmãs, era na posse destas que estavam as acções dos Cimentos. Este imbróglio sucessório estará na origem do «caso Sommer». Contudo, o empresário começa uma carreira sob protecção: em 1949, para a instalação da Companhia de Cimentos de Angola, a ECL recebe empréstimos avultados da Caixa Geral de Depósitos (120 mil contos, a uma taxa de 2,5% a 20 anos), favor tanto maior quanto a CGD estava inibida de emprestar para os investimentos nas colónias. O BNU também empresta cerca de 30 mil contos. Enquanto as condições da futura guerra se vão desenhando, Champalimaud é dos que apela ao «rápido incremento da ocupação europeia, principalmente nas áreas mais longínquas e de menor densidade económica». Para Champalimaud, não há nada a temer: «Não faltam o ânimo e a fé na continuidade sagrada dum Moçambique português». Vão seguir-se novas fábricas no Lobito (Angola), Dondo e Nacala (Moçambique).
A operação inaugural com as acções das tias está na origem de um processo judicial que excitou a imprensa ao longo de anos e criou dificuldades a Champalimaud. O «caso Sommer» começa em Março de 1957 e envolve duas acusações contra o empresário dos cimentos: a primeira é a do desvio de cerca de 10% da ECL deixados pelo tio Henrique Sommer aos cinco sobrinhos. Quando os co-herdeiros pediram a sua restituição, já Champalimaud as tem penhoradas e recusa a devolução, afirmando que pertencem às suas tias. A segunda acusação, de abuso de confiança, resulta da compra de acções da ECL pela Transformal, que depois as transferiu para a Companhia de Cimentos de Moçambique, ambas detidas por António Champalimaud.
A partir de 1957, os processos cíveis entre as duas partes são mais de 30 e as sessões em tribunal quase 400, envolvendo as partilhas de várias empresas da família. Em Março de 1959, os irmãos Carlos, Henrique e Maria Ana apresentam queixa contra António na Judiciária, que inicia as investigações e conclui pela sua inocência. Entretanto, inicia-se um processo paralelo: em Novembro de 1960, António Champalimaud apresenta queixa, em nome da Transformal, contra o seu antigo gerente, o seu irmão Henrique, acusando-o de desfalque e burla. O processo levará Henrique à prisão durante alguns meses em 1969. Mas, numa reversão do processo, António Champalimaud tem conhecimento em Fevereiro desse ano da existência de um mandato de captura contra si no âmbito deste caso. A PIDE vigia o seu barco e o seu avião. Parte então para o Alentejo com a filha, de onde o genro Luís Lino o conduzirá, em avioneta, até Madrid. Aí se encontra com Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar, para se aconselhar sobre os países com condições de extradição mais convenientes.
Apesar da censura, o noticiário do Caso Sommer populariza o tema dos rendimentos e privilégios das altas figuras do regime. No seu livro Depoimento, Marcelo Caetano deplora o «ambiente público desfavorável ao capitalismo», devido ao «escândalo levantado, à inépcia do juiz presidente e à demagogia dos advogados». Pela defesa de Champalimaud desfila uma série de advogados oposicionistas, que conferem ao processo uma carga política incómoda: o jovem Proença de Carvalho, Manuel João da Palma Carlos (ambos expulsos pelo juiz em pleno processo), Salgado Zenha, que passa a basear a defesa em argumentos abertos de perseguição política, sugerindo que o regime se serve para isso de um «louco», o irmão de António Champalimaud. Em 1973, Champalimaud é absolvido e regressa de Acapulco, no México, onde se refugiara durante cinco anos.
Um cheque do BPSM
Nos anos sessenta, a banca vive um período de falta de liquidez a que responde com a expansão das redes de balcões para captar depósitos a prazo. Champalimaud não olha a meios para avançar no seu desenvolvimento como grupo financeiro. Partindo da indústria, sempre teve o apoio da finança e conhece a sua importância: «No país não há nem haverá nunca um mercado de capitais à altura de satisfazer as necessidades da indústria. (…) O auto-financiamento representa um papel primordial, indispensável à vida e ao crescimento das empresas» (Champalimaud, citado in Maria Fernanda Rollo, História da Siderurgia, 2005).
Depois de tentar, sem sucesso, comprar a União, pequena seguradora dos Espírito Santo, vira-se em 1960 para a Confiança, do Porto, propriedade de Manuel Henriques Júnior, industrial resineiro e dono de 80% do Banco Pinto e Sotto Mayor. Henriques Júnior só aceita vender a Confiança se Champalimaud comprar também o banco. Depois de concentrar depósitos no BPSM, Champalimaud avança: «Não regateei a quantia, mandei vir um cheque avulso e preenchi-o logo ali, sacando sobre a minha conta e fechando assim o negócio. Fiquei só a dever, para pagar daí a trinta dias, uma percentagem pequena» (Exame, Junho 2004). O mesmo relato foi feito por outras palavras: a conta de Champalimaud não cobria a operação, mas quando o cheque careca chegou à administração, já Champalimaud era o presidente (Público, 09.05.2004).
É já o tempo da guerra: «o grande volume de capitais próprios que o BPSM leva para o Ultramar é uma homenagem expressiva aos que se batem nas frentes de batalha e no campo da produção para manter em África o homem português» (citado por Ana Paula Pires, Memórias da Siderurgia Nacional, 2005). Além do cimento, Champalimaud ganha o monopólio da produção de ferro e aço nas colónias. Em 1973, funda o Commercial Bank of Malawi, de que detém 60%. O Estado português, através do Instituto de Crédito de Moçambique, tem outros 20% do banco. As portas para o negócio tinham sido abertas, junto do ditador do Malawi, por Jorge Jardim, homem de negócios e agente de Salazar, que fez do Malawi um protectorado luso-sul-africano hostil aos movimentos de libertação e, em particular, à Frelimo. Durante a guerra em Moçambique, Jardim organiza grupos armados de colonos, que retaliam sobre a população local.
Mais tarde, com o 25 de Abril, Jardim refugia-se na embaixada do Malawi em Lisboa, de onde vem a fugir iludindo a vigilância policial em Junho de 1974, em direcção àquele país. Mais tarde, como veremos, estará em Madrid a organizar os grupos bombistas de extrema-direita que serão responsáveis por ataques contra a esquerda e por várias mortes.
A compra do Banco Português do Atlântico
Na sua expansão como grupo financeiro, Champalimaud faz, em 1965, a primeira tentativa de compra do BPA. A intenção torna-se rumor e chega mesmo à imprensa. Os genros de Cupertino de Miranda e administradores do banco, João Meireles e Alberto Pires de Lima, inviabilizam o negócio. Champalimaud, único accionista do BPSM, ficaria com o controlo da nova instituição que poderia resultar da fusão deste banco com o BPA, detendo assim 18% e mais 15% do mercado. Os opositores ao negócio não estão sozinhos: há accionistas que também se opõem à entrada de Champalimaud porque disputam com ele posições na indústria e não querem facilitar ao concorrente uma capacidade financeira muito acrescida. Essa disputa leva a um conflito com Salazar, porventura o mais grave, porque o governo impede a compra do BPA, apoiando os accionistas que contestaram o negócio e vetando-o de facto.
Em 1970, Champalimaud volta à carga. A partir do exílio, monta uma complexa e bem sucedida operação para tomar de assalto o BPA. Cupertino de Miranda encontra-se secretamente em Paris com o empresário fugido e vende-lhe 22,4% dos seus 38% por um milhão de contos. Mas Cupertino pretende manter-se à cabeça do banco. Julga que, com esta quota, Champalimaud será sempre obrigado a negociar acordos. Porém, Champalimaud dedica-se entretanto a coleccionar, também em segredo, as pequenas participações de vários accionistas abrangidos por um acordo de cavalheiros que quase ninguém respeitou – Bordallo, Borges Vinagre, Vinhas, Brandão Miranda, família Sousa Lara, João Lacerda, Domingos Barreiros e família Lello (juntos, com Cupertino, somavam 65%). Com 10% do BPA reunidos assim pelo empresário João Rocha, Champalimaud controla o banco e pode dispensar acordos com o seu fundador. Em Setembro de 1970, empresas de Champalimaud pedem ao BPA uma série de empréstimos avultados, até que estes começam a ser recusados. Champalimaud reúne-se de novo com Cupertino de Miranda e abre o jogo: precisa de dinheiro e é o dono do banco.
Cupertino agira a solo e, quando comunica o sucedido aos seus administradores, o pânico instala-se no BPA. Carlos da Câmara Pestana e Vasco Vieira de Almeida, em conjugação com os genros de Cupertino, acabam por decidir pela hipótese de recurso – o regaço do poder. Era conhecida a antipatia mútua entre Marcello Caetano e António Champalimaud (o sucessor de Salazar abriu o sector dos cimentos à família Queiroz Pereira, decisão que Champalimaud nunca lhe perdoaria). Na reunião com Marcello, recorda Câmara Pestana (Público, 23.02.1998), o presidente do Conselho afirma que, para evitar o negócio, estaria até disposto a nacionalizar os dois bancos. No contexto de então, sendo o BPA o segundo maior banco e o BPSM, de Champalimaud, o terceiro, esta concentração ia demasiado longe para o que o governo queria aceitar no sistema financeiro. O regime protegia mas também limitava.
Não seria necessário nacionalizar os bancos. Em Janeiro de 1971, surge o decreto n.º 1 do Ministério da Justiça, estabelecendo que «os contratos celebrados nos doze meses anteriores e que não tenham sido executados por ambas as partes» e que envolvam 5% do capital, precisam de consentimento da sociedade por maioria de dois terços, de parecer favorável do Conselho de Administração e, no caso das empresas financeiras, do Ministério das Finanças. A 19 de Janeiro sai o despacho de anulação do negócio do BPA. O advogado do foragido Champalimaud, Salgado Zenha, definiu o processo como «locupertinamento à custa alheia». Mas o Estado garantiu o essencial: que o equilíbrio bancário do regime permanecia intocado e que Champalimaud não conseguia tornar-se no gigante da banca que sempre quis ser. A carreira do quase octogenário Cupertino terminava assim: no acordo com Marcello, ficou definida a sua substituição pelo genro e proibida a venda de acções sem a autorização dos dois accionistas minoritários que tinham recusado o aliciamento. A devolução do sinal a Champalimaud demorou até às vésperas do 25 de Abril.
«Marcello é o extraordinário timoneiro do governo da nação», dizia Cupertino de Miranda, ainda grato em 1972. O obreiro da intervenção estatal, Carlos da Câmara Pestana, chegaria a presidente do BPA e à liderança do Grémio Bancário. Em 1975, depois da nacionalização da banca, ruma ao Brasil, onde fez carreira no Banco Itaú. Em 2008, aos 77 anos, é nomeado presidente do maior banco brasileiro, cuja mesa partilha com dois ex-presidentes do banco central e um ex-ministro das Finanças. Por esta via, Câmara Pestana é também administrador não-executivo do BPI, do qual o Itaú é accionista de referência (18%). A sua influência na banca portuguesa foi evidente ainda recentemente, durante a OPA do BCP sobre o BPI, quando se opôs a Jardim Gonçalves apesar de ser seu «grande amigo e lhe dever vários favores pessoais e profissionais» (Nicolau Santos, Expresso, 15.09.2008).
Abertura ao exterior torna-se novo proteccionismo
A abertura da economia portuguesa aos capitais estrangeiros, em particular depois da Segunda Guerra Mundial, teve consequências surpreendentes: uma delas foi a criação da Siderurgia Nacional, protegida da concorrência, e que transformou um dos impérios do século XX, o de António Champalimaud.
João Martins Pereira sublinha esta contradição entre o discurso de abertura e a prática proteccionista, manifesta no «facto, aparentemente paradoxal, de ter sido o processo incipiente de integração europeia, em princípio tendente à liberalização das trocas e ao mercado livre, que esteve na origem de uma empresa industrial fortemente apoiada pelo Estado [a Siderurgia Nacional] e que, com a sua protecção (que veio a chegar à proibição de importações), monopolizou durante décadas o mercado de laminados correntes em Portugal. Indo mais atrás, pode mesmo dizer-se que a origem de tudo esteve na entrada de Portugal como membro fundador, em 1947, da OECE, destinada então a co-administrar a aplicação do Plano Marshall, de que o país viria depois a ser relutante beneficiário» (Martins Pereira, Para a História da Indústria em Portugal, 1941-1965 – Adubos Azotados e Siderurgia, 2005).
A Siderurgia Nacional é criada em 1954 por Champalimaud, então com 36 anos. No ano seguinte absorve a Companhia Portuguesa de Siderurgia, sendo-lhe garantido o monopólio durante dez anos no mercado português. Tanto era assim que a empresa nem tinha director comercial, como regista Martins Pereira, que nela trabalhou no início da sua carreira de engenheiro. Mas nem por isso deixou de haver alguma fricção entre os interesses do proprietário e os do governo. Ferreira Dias e Champalimaud envolveram-se em acesa discussão sobre o preço de venda do aço e as tarifas de protecção: o empresário pedia 30% de taxas e mesmo a proibição de importação dos produtos idênticos, mas o governo não estava disposto a ir tão longe. Ferreira Dias aceitou conceder um subsídio para a exportação, dado que os produtos da Siderurgia não eram competitivos no mercado internacional, mas em contrapartida queria a entrada de capitais públicos ou semi-públicos na empresa, o que não convinha a Champalimaud.
Apesar disso, até 1967, o Estado pagava semestralmente o que fosse necessário para financiar a empresa: mesmo beneficiando da protecção alfandegária e de preços garantidos, a empresa teria sido inviável sem o financiamento permanente do Estado: para um capital de 750 mil contos, operou um investimento de 2,7 milhões, sendo a diferença garantida por capitais públicos. Como escreve Martins Pereira, «em meados dos anos 50, [Champalimaud] não tinha capacidade própria para mobilizar vultuosos capitais sem a garantia do total apoio do Estado (incluindo a concessão de um aval para a encomenda dos equipamentos principais)».
No início da construção da empresa, queixava-se do atraso na expropriação por utilidade pública de terrenos do Seixal, onde a empresa seria instalada. Nesse ano, Salazar intervém directamente em seu apoio. No ano seguinte, o empresário acusa o governo de «obstrucionismo», mas logo corrige num discurso pouco depois, em 1961: «o Estado e a iniciativa privada, cada um no lugar que a Constituição Política lhes atribui, marcharam, assim, lado a lado, em franca e leal colaboração», assegurando a sua fidelidade à ditadura a que tanto devia. Em todo o caso, Champalimaud, entre 1961 e 1965, entra frequentemente em conflito com o governo acerca dos preços no mercado interno. Mesmo dependente do Estado, Champalimaud usou toda a sua influência na ditadura para ampliar as suas regalias.
Champalimaud, Spínola, Pinochet: os bons espíritos encontram-se
A 30 de Abril de 1974, à saída de uma reunião com Spínola, em que o presidente da Junta de Salvação Nacional discute o programa do MFA com os maiores capitalistas portugueses da época, António Champalimaud felicita «todos os que estiveram na base da gloriosa arrancada – o 25 de Abril de 1974». Além de Champalimaud, estão presentes José Manuel de Mello, Manuel Ricardo Espírito Santo, Miguel Quina (o banqueiro portuense do Borges e Irmão). Champalimaud recorda o regime caído há cinco dias e como este «limitava drasticamente a capacidade de acção dos homens de iniciativa» (Filipe Fernandes, Fortunas & Negócios, empresários portugueses do século XX, 2003). Como já sabemos, este antifascismo foi de pouca dura e, para defender as suas posses, Champalimaud e todos os outros passaram-se para a conspiração anti-democrática.
Champalimaud tinha muito a defender: em 1975, era a oitava maior fortuna da Europa. Além da Siderurgia Nacional, a família é dona dos Cimentos de Leiria, Cimentos Tejo, Cimentos de Angola e Moçambique, Companhia do Cabo Mondego, metalúrgicas Cometna, Sepsa, Siderurgia de Angola e Ferrominas, das papeleiras Companhia de Papel do Prado e da Abelheira, de empresas de celulose, a Cemil, a Companhia Portuguesa de Celulose, a Socel. Tem participações na Companhia Industrial de Portugal e Colónias, Laboratórios Vitória, União Eléctrica Portuguesa, Cires, Sotéis. Na área financeira, o grupo tem o Banco Pinto e Sotto Mayor, as seguradoras Mundial, Confiança (esta também em Moçambique e Angola) e Continental de Resseguros. As suas acções valiam 40 milhões de contos, o equivalente a 9,1 mil milhões de euros (valores de 2009). Essa fortuna foi reconstruída depois das vicissitudes da revolução e, em 2008, oito herdeiros Champalimaud figuravam na lista das cem maiores fortunas da revista Exame.
Nos meses seguintes, termina este idílio insustentável com a revolução que começa. As famílias Champalimaud, Mello, Espírito Santo, Vinhas (Central Cervejas), Conceição e Silva (Torralta), com o conde de Caria (parceiro de Champalimaud no BPSM), ainda lançam um efémero Movimento Dinamizador Empresa/Sociedade (MDE/S). Em Agosto, o MDE/S entrega ao governo um documento «por uma reforma das actividades empresariais» e por um «capitalismo moderno, progressista e evoluído», acompanhado de um «plano de investimentos», anunciando querer criar 100 mil postos de trabalho, mas não convencem.
Depois do fracasso da manifestação da «maioria silenciosa», que leva à demissão do presidente Spínola em Setembro de 1974, e com a primeira nacionalização de um banco comercial (o BIP, de Jorge de Brito, preso sob acusações de burla), o ambiente político altera-se. Champalimaud toma iniciativas de outro tipo: transfere 130 mil contos dos cofres do BPSM para o seu pequeno banco em França. Ao mesmo tempo, compra à Empresa de Cimentos de Leiria (ECL) as acções da sua cimenteira no Brasil, a Soiecom, e paga com acções da própria ECL, deixando a fábrica de Minas Gerais fora do alcance das autoridades portuguesas. Depois da nacionalização a 11 de Março de 1975, as administrações do BPSM e da Cimpor (que absorve a ECL) virão a processar Champalimaud por estas operações.
Com o grupo nacionalizado, Champalimaud continua a apostar na aliança com Spínola. A ligação já vem dos tempos iniciais da Siderurgia Nacional (o militar representou o Grémio das Conservas na administração e foi quem vendeu a Champalimaud as primeiras acções na empresa) e da edição de «Portugal e o Futuro» (apoiada através da Companhia de Papel do Prado). Pouco depois do 11 de Março, Champalimaud estará perto de Paris, em casa do empresário Manuel Boullosa, com Spínola, Sanches Osório e Manuel Quina, numa reunião para montar uma estrutura de financiamento do MDLP, a rede clandestina da direita apostada na preparação e provocação da guerra civil. Segundo o depoimento de Sanches Osório, dirigente de extrema-direita, Champalimaud terá condicionado a sua participação no movimento ao controlo da sua direcção (Eduardo Dâmaso, A Invasão Spinolista, 1999). Na versão do jornalista Filipe Fernandes, esta ligação permanece até 1977 (Visão, 13.05.2004). Muitos outros, como Manuel Queiroz Pereira, contribuirão mensalmente para o MDLP. O seu antigo sócio, Boullosa, também apoia o movimento. José Miguel Júdice (que será advogado de Champalimaud vinte anos depois) é funcionário da organização em Madrid, vivendo em instalações religiosas. O tesoureiro é Cota Dias, ex-Ministro das Finanças de Caetano.
Champalimaud estabelece-se no Brasil com os filhos, mas não perderá contactos políticos. Inicia mesmo novas relações: é assim que, pouco depois de chegar ao Brasil, viaja ao Chile, onde se encontra com Augusto Pinochet, o militar que menos de dois anos antes assassinara o presidente eleito e iniciara o extermínio da esquerda (agência EFE, 19.06.1975, citada por Adelino Gomes e João Pedro Castanheira, Os Dias Loucos do PREC, 2006). No Brasil, além da cimenteira Soiecom, a família tem três enormes fazendas que a tornam no maior produtor mundial de feijão em 1995 (DN, 18.03.1995). A fazenda Imperatriz, comprada em Bolsa, inclui um pedaço de reserva amazónica e é a maior do Estado do Maranhão.
http://www.esquerda.net/artigo/quem-foi-champalimaud
E tinha pressa. Aos 24 anos, António passa a fazer parte da administração da Empresa Cimentos de Leiria (ECL), do seu tio Henrique Sommer. Os Sommer eram descendentes de Henry, Barão de Sommer, alemão imigrado em Portugal, e dedicavam-se ao cimento e ao ferro: a família fundara em 1920 os Cimentos de Leiria e três anos depois introduzira no país a técnica do cimento Portland. Em 1935, comprara os Cimentos Tejo, passando a dominar o mercado nacional. Era também dono de interesses no algodão, metalomecânica e calçado, numa estratégia de diversificação que viria a ser o padrão dos principais grupos portugueses. Quando morre, em 1944, Henrique deixa ao sobrinho, António Champalimaud, a herança que será o início da sua fortuna.
Já presidente dos Cimentos de Leiria, Champalimaud posiciona-se para uma rápida acumulação. 1944 é também o ano do seu casamento com Cristina de Mello, filha de Manuel de Mello, neta de Alfredo da Silva. O sogro convida-o para dirigir a empresa de navegação do grupo, a Sociedade Geral, e garante-lhe o crédito da Casa José Henriques Totta, o banco da CUF. António quer comprar ao BNU a fábrica de cimentos da Matola, perto de Lourenço Marques, e move influências: o sogro pede a Salazar a preferência para o genro e Champalimaud consegue-a através do secretário pessoal do ditador, Alexandre Ribeiro da Cunha, seu amigo.
Caso Sommer: protecção e perseguição?
Em 1944, Champalimaud defronta-se com a oposição dos outros accionistas da Cimentos de Leiria, que não concordam com a compra da Matola. Champalimaud pede então às tias as suas acções da ECL como penhor de um novo empréstimo do Totta. Entre a declaração testamentária do tio Henrique, que beneficiaria os sobrinhos, e uma carta posterior, a favor das irmãs, era na posse destas que estavam as acções dos Cimentos. Este imbróglio sucessório estará na origem do «caso Sommer». Contudo, o empresário começa uma carreira sob protecção: em 1949, para a instalação da Companhia de Cimentos de Angola, a ECL recebe empréstimos avultados da Caixa Geral de Depósitos (120 mil contos, a uma taxa de 2,5% a 20 anos), favor tanto maior quanto a CGD estava inibida de emprestar para os investimentos nas colónias. O BNU também empresta cerca de 30 mil contos. Enquanto as condições da futura guerra se vão desenhando, Champalimaud é dos que apela ao «rápido incremento da ocupação europeia, principalmente nas áreas mais longínquas e de menor densidade económica». Para Champalimaud, não há nada a temer: «Não faltam o ânimo e a fé na continuidade sagrada dum Moçambique português». Vão seguir-se novas fábricas no Lobito (Angola), Dondo e Nacala (Moçambique).
A operação inaugural com as acções das tias está na origem de um processo judicial que excitou a imprensa ao longo de anos e criou dificuldades a Champalimaud. O «caso Sommer» começa em Março de 1957 e envolve duas acusações contra o empresário dos cimentos: a primeira é a do desvio de cerca de 10% da ECL deixados pelo tio Henrique Sommer aos cinco sobrinhos. Quando os co-herdeiros pediram a sua restituição, já Champalimaud as tem penhoradas e recusa a devolução, afirmando que pertencem às suas tias. A segunda acusação, de abuso de confiança, resulta da compra de acções da ECL pela Transformal, que depois as transferiu para a Companhia de Cimentos de Moçambique, ambas detidas por António Champalimaud.
A partir de 1957, os processos cíveis entre as duas partes são mais de 30 e as sessões em tribunal quase 400, envolvendo as partilhas de várias empresas da família. Em Março de 1959, os irmãos Carlos, Henrique e Maria Ana apresentam queixa contra António na Judiciária, que inicia as investigações e conclui pela sua inocência. Entretanto, inicia-se um processo paralelo: em Novembro de 1960, António Champalimaud apresenta queixa, em nome da Transformal, contra o seu antigo gerente, o seu irmão Henrique, acusando-o de desfalque e burla. O processo levará Henrique à prisão durante alguns meses em 1969. Mas, numa reversão do processo, António Champalimaud tem conhecimento em Fevereiro desse ano da existência de um mandato de captura contra si no âmbito deste caso. A PIDE vigia o seu barco e o seu avião. Parte então para o Alentejo com a filha, de onde o genro Luís Lino o conduzirá, em avioneta, até Madrid. Aí se encontra com Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar, para se aconselhar sobre os países com condições de extradição mais convenientes.
Apesar da censura, o noticiário do Caso Sommer populariza o tema dos rendimentos e privilégios das altas figuras do regime. No seu livro Depoimento, Marcelo Caetano deplora o «ambiente público desfavorável ao capitalismo», devido ao «escândalo levantado, à inépcia do juiz presidente e à demagogia dos advogados». Pela defesa de Champalimaud desfila uma série de advogados oposicionistas, que conferem ao processo uma carga política incómoda: o jovem Proença de Carvalho, Manuel João da Palma Carlos (ambos expulsos pelo juiz em pleno processo), Salgado Zenha, que passa a basear a defesa em argumentos abertos de perseguição política, sugerindo que o regime se serve para isso de um «louco», o irmão de António Champalimaud. Em 1973, Champalimaud é absolvido e regressa de Acapulco, no México, onde se refugiara durante cinco anos.
Um cheque do BPSM
Nos anos sessenta, a banca vive um período de falta de liquidez a que responde com a expansão das redes de balcões para captar depósitos a prazo. Champalimaud não olha a meios para avançar no seu desenvolvimento como grupo financeiro. Partindo da indústria, sempre teve o apoio da finança e conhece a sua importância: «No país não há nem haverá nunca um mercado de capitais à altura de satisfazer as necessidades da indústria. (…) O auto-financiamento representa um papel primordial, indispensável à vida e ao crescimento das empresas» (Champalimaud, citado in Maria Fernanda Rollo, História da Siderurgia, 2005).
Depois de tentar, sem sucesso, comprar a União, pequena seguradora dos Espírito Santo, vira-se em 1960 para a Confiança, do Porto, propriedade de Manuel Henriques Júnior, industrial resineiro e dono de 80% do Banco Pinto e Sotto Mayor. Henriques Júnior só aceita vender a Confiança se Champalimaud comprar também o banco. Depois de concentrar depósitos no BPSM, Champalimaud avança: «Não regateei a quantia, mandei vir um cheque avulso e preenchi-o logo ali, sacando sobre a minha conta e fechando assim o negócio. Fiquei só a dever, para pagar daí a trinta dias, uma percentagem pequena» (Exame, Junho 2004). O mesmo relato foi feito por outras palavras: a conta de Champalimaud não cobria a operação, mas quando o cheque careca chegou à administração, já Champalimaud era o presidente (Público, 09.05.2004).
É já o tempo da guerra: «o grande volume de capitais próprios que o BPSM leva para o Ultramar é uma homenagem expressiva aos que se batem nas frentes de batalha e no campo da produção para manter em África o homem português» (citado por Ana Paula Pires, Memórias da Siderurgia Nacional, 2005). Além do cimento, Champalimaud ganha o monopólio da produção de ferro e aço nas colónias. Em 1973, funda o Commercial Bank of Malawi, de que detém 60%. O Estado português, através do Instituto de Crédito de Moçambique, tem outros 20% do banco. As portas para o negócio tinham sido abertas, junto do ditador do Malawi, por Jorge Jardim, homem de negócios e agente de Salazar, que fez do Malawi um protectorado luso-sul-africano hostil aos movimentos de libertação e, em particular, à Frelimo. Durante a guerra em Moçambique, Jardim organiza grupos armados de colonos, que retaliam sobre a população local.
Mais tarde, com o 25 de Abril, Jardim refugia-se na embaixada do Malawi em Lisboa, de onde vem a fugir iludindo a vigilância policial em Junho de 1974, em direcção àquele país. Mais tarde, como veremos, estará em Madrid a organizar os grupos bombistas de extrema-direita que serão responsáveis por ataques contra a esquerda e por várias mortes.
A compra do Banco Português do Atlântico
Na sua expansão como grupo financeiro, Champalimaud faz, em 1965, a primeira tentativa de compra do BPA. A intenção torna-se rumor e chega mesmo à imprensa. Os genros de Cupertino de Miranda e administradores do banco, João Meireles e Alberto Pires de Lima, inviabilizam o negócio. Champalimaud, único accionista do BPSM, ficaria com o controlo da nova instituição que poderia resultar da fusão deste banco com o BPA, detendo assim 18% e mais 15% do mercado. Os opositores ao negócio não estão sozinhos: há accionistas que também se opõem à entrada de Champalimaud porque disputam com ele posições na indústria e não querem facilitar ao concorrente uma capacidade financeira muito acrescida. Essa disputa leva a um conflito com Salazar, porventura o mais grave, porque o governo impede a compra do BPA, apoiando os accionistas que contestaram o negócio e vetando-o de facto.
Em 1970, Champalimaud volta à carga. A partir do exílio, monta uma complexa e bem sucedida operação para tomar de assalto o BPA. Cupertino de Miranda encontra-se secretamente em Paris com o empresário fugido e vende-lhe 22,4% dos seus 38% por um milhão de contos. Mas Cupertino pretende manter-se à cabeça do banco. Julga que, com esta quota, Champalimaud será sempre obrigado a negociar acordos. Porém, Champalimaud dedica-se entretanto a coleccionar, também em segredo, as pequenas participações de vários accionistas abrangidos por um acordo de cavalheiros que quase ninguém respeitou – Bordallo, Borges Vinagre, Vinhas, Brandão Miranda, família Sousa Lara, João Lacerda, Domingos Barreiros e família Lello (juntos, com Cupertino, somavam 65%). Com 10% do BPA reunidos assim pelo empresário João Rocha, Champalimaud controla o banco e pode dispensar acordos com o seu fundador. Em Setembro de 1970, empresas de Champalimaud pedem ao BPA uma série de empréstimos avultados, até que estes começam a ser recusados. Champalimaud reúne-se de novo com Cupertino de Miranda e abre o jogo: precisa de dinheiro e é o dono do banco.
Cupertino agira a solo e, quando comunica o sucedido aos seus administradores, o pânico instala-se no BPA. Carlos da Câmara Pestana e Vasco Vieira de Almeida, em conjugação com os genros de Cupertino, acabam por decidir pela hipótese de recurso – o regaço do poder. Era conhecida a antipatia mútua entre Marcello Caetano e António Champalimaud (o sucessor de Salazar abriu o sector dos cimentos à família Queiroz Pereira, decisão que Champalimaud nunca lhe perdoaria). Na reunião com Marcello, recorda Câmara Pestana (Público, 23.02.1998), o presidente do Conselho afirma que, para evitar o negócio, estaria até disposto a nacionalizar os dois bancos. No contexto de então, sendo o BPA o segundo maior banco e o BPSM, de Champalimaud, o terceiro, esta concentração ia demasiado longe para o que o governo queria aceitar no sistema financeiro. O regime protegia mas também limitava.
Não seria necessário nacionalizar os bancos. Em Janeiro de 1971, surge o decreto n.º 1 do Ministério da Justiça, estabelecendo que «os contratos celebrados nos doze meses anteriores e que não tenham sido executados por ambas as partes» e que envolvam 5% do capital, precisam de consentimento da sociedade por maioria de dois terços, de parecer favorável do Conselho de Administração e, no caso das empresas financeiras, do Ministério das Finanças. A 19 de Janeiro sai o despacho de anulação do negócio do BPA. O advogado do foragido Champalimaud, Salgado Zenha, definiu o processo como «locupertinamento à custa alheia». Mas o Estado garantiu o essencial: que o equilíbrio bancário do regime permanecia intocado e que Champalimaud não conseguia tornar-se no gigante da banca que sempre quis ser. A carreira do quase octogenário Cupertino terminava assim: no acordo com Marcello, ficou definida a sua substituição pelo genro e proibida a venda de acções sem a autorização dos dois accionistas minoritários que tinham recusado o aliciamento. A devolução do sinal a Champalimaud demorou até às vésperas do 25 de Abril.
«Marcello é o extraordinário timoneiro do governo da nação», dizia Cupertino de Miranda, ainda grato em 1972. O obreiro da intervenção estatal, Carlos da Câmara Pestana, chegaria a presidente do BPA e à liderança do Grémio Bancário. Em 1975, depois da nacionalização da banca, ruma ao Brasil, onde fez carreira no Banco Itaú. Em 2008, aos 77 anos, é nomeado presidente do maior banco brasileiro, cuja mesa partilha com dois ex-presidentes do banco central e um ex-ministro das Finanças. Por esta via, Câmara Pestana é também administrador não-executivo do BPI, do qual o Itaú é accionista de referência (18%). A sua influência na banca portuguesa foi evidente ainda recentemente, durante a OPA do BCP sobre o BPI, quando se opôs a Jardim Gonçalves apesar de ser seu «grande amigo e lhe dever vários favores pessoais e profissionais» (Nicolau Santos, Expresso, 15.09.2008).
Abertura ao exterior torna-se novo proteccionismo
A abertura da economia portuguesa aos capitais estrangeiros, em particular depois da Segunda Guerra Mundial, teve consequências surpreendentes: uma delas foi a criação da Siderurgia Nacional, protegida da concorrência, e que transformou um dos impérios do século XX, o de António Champalimaud.
João Martins Pereira sublinha esta contradição entre o discurso de abertura e a prática proteccionista, manifesta no «facto, aparentemente paradoxal, de ter sido o processo incipiente de integração europeia, em princípio tendente à liberalização das trocas e ao mercado livre, que esteve na origem de uma empresa industrial fortemente apoiada pelo Estado [a Siderurgia Nacional] e que, com a sua protecção (que veio a chegar à proibição de importações), monopolizou durante décadas o mercado de laminados correntes em Portugal. Indo mais atrás, pode mesmo dizer-se que a origem de tudo esteve na entrada de Portugal como membro fundador, em 1947, da OECE, destinada então a co-administrar a aplicação do Plano Marshall, de que o país viria depois a ser relutante beneficiário» (Martins Pereira, Para a História da Indústria em Portugal, 1941-1965 – Adubos Azotados e Siderurgia, 2005).
A Siderurgia Nacional é criada em 1954 por Champalimaud, então com 36 anos. No ano seguinte absorve a Companhia Portuguesa de Siderurgia, sendo-lhe garantido o monopólio durante dez anos no mercado português. Tanto era assim que a empresa nem tinha director comercial, como regista Martins Pereira, que nela trabalhou no início da sua carreira de engenheiro. Mas nem por isso deixou de haver alguma fricção entre os interesses do proprietário e os do governo. Ferreira Dias e Champalimaud envolveram-se em acesa discussão sobre o preço de venda do aço e as tarifas de protecção: o empresário pedia 30% de taxas e mesmo a proibição de importação dos produtos idênticos, mas o governo não estava disposto a ir tão longe. Ferreira Dias aceitou conceder um subsídio para a exportação, dado que os produtos da Siderurgia não eram competitivos no mercado internacional, mas em contrapartida queria a entrada de capitais públicos ou semi-públicos na empresa, o que não convinha a Champalimaud.
Apesar disso, até 1967, o Estado pagava semestralmente o que fosse necessário para financiar a empresa: mesmo beneficiando da protecção alfandegária e de preços garantidos, a empresa teria sido inviável sem o financiamento permanente do Estado: para um capital de 750 mil contos, operou um investimento de 2,7 milhões, sendo a diferença garantida por capitais públicos. Como escreve Martins Pereira, «em meados dos anos 50, [Champalimaud] não tinha capacidade própria para mobilizar vultuosos capitais sem a garantia do total apoio do Estado (incluindo a concessão de um aval para a encomenda dos equipamentos principais)».
No início da construção da empresa, queixava-se do atraso na expropriação por utilidade pública de terrenos do Seixal, onde a empresa seria instalada. Nesse ano, Salazar intervém directamente em seu apoio. No ano seguinte, o empresário acusa o governo de «obstrucionismo», mas logo corrige num discurso pouco depois, em 1961: «o Estado e a iniciativa privada, cada um no lugar que a Constituição Política lhes atribui, marcharam, assim, lado a lado, em franca e leal colaboração», assegurando a sua fidelidade à ditadura a que tanto devia. Em todo o caso, Champalimaud, entre 1961 e 1965, entra frequentemente em conflito com o governo acerca dos preços no mercado interno. Mesmo dependente do Estado, Champalimaud usou toda a sua influência na ditadura para ampliar as suas regalias.
Champalimaud, Spínola, Pinochet: os bons espíritos encontram-se
A 30 de Abril de 1974, à saída de uma reunião com Spínola, em que o presidente da Junta de Salvação Nacional discute o programa do MFA com os maiores capitalistas portugueses da época, António Champalimaud felicita «todos os que estiveram na base da gloriosa arrancada – o 25 de Abril de 1974». Além de Champalimaud, estão presentes José Manuel de Mello, Manuel Ricardo Espírito Santo, Miguel Quina (o banqueiro portuense do Borges e Irmão). Champalimaud recorda o regime caído há cinco dias e como este «limitava drasticamente a capacidade de acção dos homens de iniciativa» (Filipe Fernandes, Fortunas & Negócios, empresários portugueses do século XX, 2003). Como já sabemos, este antifascismo foi de pouca dura e, para defender as suas posses, Champalimaud e todos os outros passaram-se para a conspiração anti-democrática.
Champalimaud tinha muito a defender: em 1975, era a oitava maior fortuna da Europa. Além da Siderurgia Nacional, a família é dona dos Cimentos de Leiria, Cimentos Tejo, Cimentos de Angola e Moçambique, Companhia do Cabo Mondego, metalúrgicas Cometna, Sepsa, Siderurgia de Angola e Ferrominas, das papeleiras Companhia de Papel do Prado e da Abelheira, de empresas de celulose, a Cemil, a Companhia Portuguesa de Celulose, a Socel. Tem participações na Companhia Industrial de Portugal e Colónias, Laboratórios Vitória, União Eléctrica Portuguesa, Cires, Sotéis. Na área financeira, o grupo tem o Banco Pinto e Sotto Mayor, as seguradoras Mundial, Confiança (esta também em Moçambique e Angola) e Continental de Resseguros. As suas acções valiam 40 milhões de contos, o equivalente a 9,1 mil milhões de euros (valores de 2009). Essa fortuna foi reconstruída depois das vicissitudes da revolução e, em 2008, oito herdeiros Champalimaud figuravam na lista das cem maiores fortunas da revista Exame.
Nos meses seguintes, termina este idílio insustentável com a revolução que começa. As famílias Champalimaud, Mello, Espírito Santo, Vinhas (Central Cervejas), Conceição e Silva (Torralta), com o conde de Caria (parceiro de Champalimaud no BPSM), ainda lançam um efémero Movimento Dinamizador Empresa/Sociedade (MDE/S). Em Agosto, o MDE/S entrega ao governo um documento «por uma reforma das actividades empresariais» e por um «capitalismo moderno, progressista e evoluído», acompanhado de um «plano de investimentos», anunciando querer criar 100 mil postos de trabalho, mas não convencem.
Depois do fracasso da manifestação da «maioria silenciosa», que leva à demissão do presidente Spínola em Setembro de 1974, e com a primeira nacionalização de um banco comercial (o BIP, de Jorge de Brito, preso sob acusações de burla), o ambiente político altera-se. Champalimaud toma iniciativas de outro tipo: transfere 130 mil contos dos cofres do BPSM para o seu pequeno banco em França. Ao mesmo tempo, compra à Empresa de Cimentos de Leiria (ECL) as acções da sua cimenteira no Brasil, a Soiecom, e paga com acções da própria ECL, deixando a fábrica de Minas Gerais fora do alcance das autoridades portuguesas. Depois da nacionalização a 11 de Março de 1975, as administrações do BPSM e da Cimpor (que absorve a ECL) virão a processar Champalimaud por estas operações.
Com o grupo nacionalizado, Champalimaud continua a apostar na aliança com Spínola. A ligação já vem dos tempos iniciais da Siderurgia Nacional (o militar representou o Grémio das Conservas na administração e foi quem vendeu a Champalimaud as primeiras acções na empresa) e da edição de «Portugal e o Futuro» (apoiada através da Companhia de Papel do Prado). Pouco depois do 11 de Março, Champalimaud estará perto de Paris, em casa do empresário Manuel Boullosa, com Spínola, Sanches Osório e Manuel Quina, numa reunião para montar uma estrutura de financiamento do MDLP, a rede clandestina da direita apostada na preparação e provocação da guerra civil. Segundo o depoimento de Sanches Osório, dirigente de extrema-direita, Champalimaud terá condicionado a sua participação no movimento ao controlo da sua direcção (Eduardo Dâmaso, A Invasão Spinolista, 1999). Na versão do jornalista Filipe Fernandes, esta ligação permanece até 1977 (Visão, 13.05.2004). Muitos outros, como Manuel Queiroz Pereira, contribuirão mensalmente para o MDLP. O seu antigo sócio, Boullosa, também apoia o movimento. José Miguel Júdice (que será advogado de Champalimaud vinte anos depois) é funcionário da organização em Madrid, vivendo em instalações religiosas. O tesoureiro é Cota Dias, ex-Ministro das Finanças de Caetano.
Champalimaud estabelece-se no Brasil com os filhos, mas não perderá contactos políticos. Inicia mesmo novas relações: é assim que, pouco depois de chegar ao Brasil, viaja ao Chile, onde se encontra com Augusto Pinochet, o militar que menos de dois anos antes assassinara o presidente eleito e iniciara o extermínio da esquerda (agência EFE, 19.06.1975, citada por Adelino Gomes e João Pedro Castanheira, Os Dias Loucos do PREC, 2006). No Brasil, além da cimenteira Soiecom, a família tem três enormes fazendas que a tornam no maior produtor mundial de feijão em 1995 (DN, 18.03.1995). A fazenda Imperatriz, comprada em Bolsa, inclui um pedaço de reserva amazónica e é a maior do Estado do Maranhão.
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