Friday 22 October 2010

A VOZ DO NACIONAL

1922-2010

Mariana Rey Monteiro: Ela era a voz do Teatro Nacional

22.10.2010 - Sérgio C. Andrade com A.D.C., A.P.C., I.S. e L.C.

Durante muito tempo foi vista apenas como a filha de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Apesar da pesada herança, Mariana Rey Monteiro acabou por construir uma carreira nos palcos elogiada por toda a gente. Mas foi a telenovela que tornou conhecida do grande público a sua "voz única" e os seus "olhos tristes".

O que teria sido a carreira de Mariana Rey Monteiro se não fosse "a filha de Amélia Rey Colaço"? E teria ela uma carreira teatral se não fosse a herdeira do mais famoso casal do teatro português do século XX - Rey Colaço-Robles Monteiro -, actores e empresários do D. Maria II desde 1929?

Esta dúvida atravessa as mentes de todos os que agora foram chamados a evocar a vida e a carreira da actriz, que morreu anteontem na sua casa de Lisboa, aos 87 anos.

Mas toda a gente começa por falar da grande senhora - na vida e no teatro - que foi Mariana Rey Monteiro. Um dos primeiros a lembrá-lo foi o seu amigo e colega de muitos palcos Ruy de Carvalho, que lamentou a perda de "uma grande actriz". José Carlos Alvarez, director do Museu Nacional do Teatro, classificou-a como "uma figura notável, que deixa um rasto muito forte no teatro português".

Mas, afinal, por que se destacava Mariana Rey Monteiro? Urbano Tavares Rodrigues diz que, para além de uma grande actriz, "Mariana era uma criatura maravilhosa, delicada, gentilíssima", sintetizando os elogios que se repetem no meio teatral, onde a sua serenidade, inteligência e humanidade nunca passaram despercebidas. Já sobre a sua dimensão artística, Fernando Midões, um histórico da crítica de teatro em Portugal (Diário de Notícias e Diário Popular), que acompanhou praticamente toda a sua carreira, diz simplesmente que Mariana Rey Monteiro "juntava intuição, inteligência e perfeição na arte de representar - não se ficava pelo texto, aprofundava o subtexto das peças".

É esta inteligência, aliada a uma grande sensibilidade, que o dramaturgo Luís Francisco Rebello, também seu amigo pessoal, faz questão de realçar na carreira desta "herdeira de um nome e tradição ilustres" que, pelo seu trabalho, se transformou numa "referência importante do teatro português que antecedeu a revolução de 1974".

Da geração que lhe sucedeu, e que mudou os códigos e a tradição do teatro em Portugal, Jorge Silva Melo começa por recordar a voz da actriz. "Ela tinha aquela voz única, quebrada, timbrada e com uns graves muito bonitos. Quando a ouvíamos, era a voz do Teatro Nacional", disse ao P2 o actor, encenador e fundador do Teatro da Cornucópia. Luís Miguel Cintra, também fundador da companhia, é outro admirador da actriz com quem contracenou no filme de Paulo Rocha O Desejado, ou as Montanhas da Lua, de 1987: "Ela era uma referência viva da qualidade que havia na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro." O actor-encenador da Cornucópia recorda tê-la visto, ainda estudante, na peça Equilíbrio Instável, de Edward Albee, no Teatro Avenida, no final dos anos 60. Vem também dessa época a memória que Silva Melo guarda das primeiras vezes que viu a actriz em palco, citando em especial a sua presença em Divinas Palavras, de Valle-Inclán, Tango, de Mrozek, e principalmente O Rei Está a Morrer, de Ionesco. "Era uma presença muito poética e fascinante. Ficávamos ali a olhar para ela..."

O encenador dos Artistas Unidos regressa à questão da herança: "Deve ter sido difícil para a Mariana ser filha de uma mulher tão rara e poderosa como o foi Amélia Rey Colaço." Eugénia Vasques, ex-crítica e agora professora de Teatro, recorda "aquele olhar triste, magoado, que parecia ter uma raiva escondida e que marca todo o seu trajecto como actriz", e nota também que a carreira da actriz foi feita durante grande parte do tempo na sombra da mãe. "Foi sempre o braço-direito da mãe, até ao fim, e isso vê-se nos papéis que representa", explica ao P2. "Mariana secundava a mãe e o seu génio - a palavra é tremenda, mas justa. Até à morte do pai, em 1958, Mariana serviu os pais. E depois a mãe passou a ser o centro de tudo o que ela fazia no teatro, tinha-lhe uma dedicação imensa."

Mariana Rey Monteiro comentou esta questão na entrevista que deu a Adelino Gomes, a pretexto do seu 80.º aniversário (PÚBLICO 14/01/2003), admitindo que esse "peso familiar" fez sempre parte da sua vida. "Numas partes, ajudou. Mas tive sempre a preocupação instintiva de corresponder às exigências. Era um incentivo, uma chicotada que me fazia andar."

Antígona na estreia

A biografia teatral de Mariana Rey Monteiro mostra, de resto, que ela teve de lutar na sua própria família para conseguir subir a um palco. "Os meus pais tinham pavor que eu fosse para o teatro", disse a actriz na referida entrevista, tudo para que evitasse enfrentar as mesmas dificuldades que eles. "Queriam que eu fosse casar com um rei ou com um príncipe, não sei. Adoravam-me. E sofriam muito com a profissão." Por isso foi estudar Inglês para Inglaterra, aos 15 anos, e depois experimentou diferentes trabalhos, entre os quais o de secretária do então presidente da Emissora Nacional, Henrique Galvão (mais tarde líder do célebre desvio do paquete Santa Maria, em 1961).

Apesar das preocupações familiares, a estreia de palco da "Marianinha" (era assim que a tratavam em casa e no teatro) tinha acontecido, aos 12 anos, pela mão da mãe, que a fez entrar no coro de uma encenação d"A Castro, de António Ferreira, no Mosteiro de Alcobaça. A estreia verdadeira viria, contudo, a acontecer só aos 24 anos, e logo com um clássico do teatro mundial: Antígona, de Sófocles, numa adaptação de Júlio Dantas para o Teatro Nacional D. Maria II, em 1946, em que a actriz teve Maria Barroso como "madrinha de cena".

"Como eu não saía do teatro, lembro-me de ver a Marianinha na estreia", recordou ontem ao P2 o actor João Perry, que mais tarde viria a contracenar com a actriz diversas vezes. "Eu devia ter uns sete ou oito anos, e lembro-me de, no fim, lhe ter ido dar um ramo de flores que os meus pais tinham comprado."

Mariana passou então a ser presença frequente no palco do Nacional. Da sua extensa biografia teatral, Luís Francisco Rebello destaca as suas interpretações em textos clássicos de Shakespeare (Sonho de Uma Noite de Verão), Molière (Tartufo), António Ferreira (A Castro); além da Sónia de Crime e Castigo, a Santa Joana de Bernard Shaw, a Blanche de Um Eléctrico Chamado Desejo, e ainda no já citado Divinas Palavras, de Valle-Inclán, e no Pecado de João Agonia, de Bernardo Santareno, "e tantas, tantas outras".

A carreira no Nacional foi interrompida com o incêndio que danificou o edifício no Rossio, em 1964. "O meu teatro, o nosso teatro (Nacional), morreu com o incêndio. Tinha uma graça, uma patine que nunca mais se encontra", lamentou a actriz na conversa com Adelino Gomes.

Seduzida pela televisão

Logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, a carreira da actriz esmoreceu nos palcos. "Ela foi maltratada pelo país, logo a seguir à revolução", dizia ontem a cantora e actriz Simone de Oliveira.

Em contrapartida, Mariana Rey Monteiro viria a conquistar um grande mediatismo através dos trabalhos que fez para a televisão, primeiro na série Gente Fina É Outra Coisa, onde a sua mãe está novamente presente, mas sobretudo nas telenovelas, a começar pela que inaugurou a produção portuguesa nesse domínio, Vila Faia, e depois Cinzas, Vidas de Sal e Roseira Brava.

"A arte de representar na televisão é que me seduziu muito. É o poder de uma caixinha que entra na casa de todas as pessoas", disse a actriz a propósito da sua experiência televisiva, que parece ter sido para ela bem mais recompensadora do que a que tivera no grande ecrã, primeiro no filme Um Dia de Vida (1962), de Augusto Fraga, e depois em O Vestido Cor de Fogo (1986), de Lauro António, e no já citado filme de Paulo Rocha.

Agora toda a gente fala e elogia Mariana Rey Monteiro, diz Simone de Oliveira, "mas quando se retirou, ninguém quis saber dela, ninguém lhe mandou uma flor". O funeral da actriz realiza-se hoje de manhã, às 10h15, da Igreja de Santos para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa.

http://ipsilon.publico.pt/teatro/texto.aspx?id=267946

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