Entrevista
Se Deus quiser nunca hei-de passar fome, porque sei fazer muitas coisasDuarte D’Orey, 38 anos, empresário na área financeira, surpreendeu pela coragem e capacidade de apresentar soluções para a complicada situação do BPP. O negócio não se concretizou, mas considera que valeu a pena. Inovador, foi capa do “Wall Street Journal” no dia em que lançou o primeiro fundo de passes de jogadores de futebol a nível mundial. Nunca deu uma entrevista em que falasse da vida privada. Aceitou o desafio e a conversa fluiu naturalmente.
Qual é a ressaca do negócio do BPP?
[sorriso] A ressaca é positiva e tudo tem o seu lado bom. Eu olho sempre para o lado positivo das coisas, mesmo quando elas não acontecem como eu gostava que acontecessem. Foi o caso.
Para si não era evidente que o desfecho fosse negativo para as suas pretensões?
Não, longe disso. Acho que a história ainda não acabou e, apesar de tudo, aprendi imensas lições e estou muito contente com isso.
O que é que aprendeu?
Conheci muitas pessoas que não conhecia e descobri gente encantadora e muito competente. Por outro lado, aprendi que a política é muito mais complicada do que parece e tem um modus operandi diferente do dos negócios, que muitas vezes não consigo entender.
Qual seria a lógica natural de evolução do processo BPP?
Como considero que é um tema que não está fechado, prefiro não falar mais dele agora. Independentemente do desfecho que venha a ter, todo o processo foi muito positivo, porque aprendi imenso.
O facto de parecer muito novo tem prejudicado a carreira profissional?
[sorriso] Não me prejudica nada. Pelo contrário: às vezes até sou subestimado em termos negociais, mas ao fim de 30 segundos percebem logo com quem estão a falar.
Acha que as pessoas esperam menos de si por ter o ar que tem?
Por vezes chegam a achar que são favas contadas. Já não me chamavam "menino" há uns anos, mas antigamente também chamavam e depois arrependiam-se. Não tenho problemas nenhuns com o ar que tenho nem com o facto de ser novo. Já fiz muita coisa e sempre dei provas com factos. É assim que vou continuar. Um dia hei-de ser velho e não tenho medo disso.
A partir de que idade se é velho?
Não sei. A idade é um estado de espírito e, nesse sentido, espero nunca ser velho. Para mim, ser velho de espírito é passar a vida a olhar para o espelho retrovisor. Eu olho quase sempre pelo pára-brisas. 90% do meu tempo é a olhar para o pára-brisas e 10% para o retrovisor. Envelhecemos quando passamos tanto tempo a olhar para o espelho retrovisor que não conseguimos guiar o carro.
Aos 38 anos, com cinco filhas e um percurso profissional tão cheio, qual é a sua obra maior?
A minha família! Profissionalmente valorizo o conjunto das coisas, mas gostei particularmente de fazer o primeiro hedge fund em Portugal em 1999. Foi começar do zero e foi o meu arranque como empresário. Também me deu um prazer especial fazer a OPA sobre a Orey Antunes em 2003. Houve uma solicitação familiar para ajudar numa transição de gerações e resolver um conflito, eu respondi a esse chamamento e acho que consegui resolver o problema. Também me deu imenso gozo comprar a Agemasa Global, que era uma operação que estava completamente perdida e no dia em que ia ser comprada decidimos ir a Madrid tentar 'entrar nos sapatos do comprador'.
Essa expressão - 'calçar os sapatos dos outros' - é dos índios, que acreditam que só conseguimos perceber verdadeiramente os outros quando calçamos os seus sapatos. Usa-a com este sentido ou por pertencer à sua gíria profissional?
[sorriso] Por acaso entrei nos sapatos de um comprador que era indiano, mas a quem os espanhóis chamam índios. Tomei a posição que ele ia tomar, entrei na sua posição contratual e, depois, fui negociar com o vendedor.
Ser pai de cinco raparigas é obra. Qual é o sentimento de um homem cuja vida familiar é rodeada de mulheres?
É uma grande obra [risos]. E é um sentimento fantástico. As minhas filhas não são minhas no sentido da posse, vieram simplesmente através de mim, e o meu papel é educá-las. Dar educação é dar ferramentas para que elas consigam mais tarde seguir o seu caminho, viverem, sobreviverem, serem felizes, fazerem outros felizes, encontrarem-se a elas próprias, poderem ajudar os outros, enfim... tudo isso.
A vida surpreendeu-o com cinco filhas, ou não?
[risos] A vida deu-me provavelmente aquilo de que eu precisaria. Aceito com humildade o que recebi da vida e adoro ser pai das minhas filhas. São maravilhosas, espectaculares, cheias de alegria e de personalidade. Revemo-nos aos bocadinhos nelas, mas é como se elas nos devolvessem um 'nós' melhor.
O que é que as suas filhas lhe revelaram sobre si próprio?
Imensas coisas. Elas têm uma maturidade brutal, que nunca esperaria nestas idades (entre os três e os 13). Todos os anos fazemos uma avaliação do pai: eu pergunto-lhes se acham que sou justo, se estudo com elas, se passo tempo suficiente em casa, e elas dão-me notas.
Como é que tem sido a sua avaliação?
De uma forma geral tem sido boa [risos]. Elas não são suficientemente imparciais!
Nada. Acabam sempre por me dar melhores notas do que mereço. Mas as mais velhas começam a ser mais objectivas na avaliação e isso também me dá sinais.
Tem tempo para a vida de família?
A minha mulher é um pilar na educação das nossas filhas e liberta-me tempo para o trabalho. Normalmente estou livre ao fim-de-semana, de manhã tomo quase sempre o pequeno-almoço em casa e à noite ainda consigo estar com a família à hora do jantar.
Ao contrário do que muitos imaginam quando olham para si e vêm apenas um homem novo, bonito, rico e com sucesso, também viveu situações muito dramáticas. Ficou marcado?
Vivi momentos muito bons e momentos muito maus e todos me marcaram. Já estive em ambos os lados da vida e estou perfeitamente tranquilo numa ou noutra circunstância. Tive um pai excepcional e tinha uma relação muito afectiva com ele. Herdei dele aquilo que nunca ninguém me vai poder tirar: uma educação fantástica. Não herdei dinheiro mas herdei uma educação que me permitiu trabalhar e construir tudo o que construí até agora. Não é muito mas é meu, fui eu que o fiz e ninguém me deu nada.
Como era o seu pai?
Era uma pessoa com uma profundidade invulgar, falava sete línguas, era um estudioso de literatura, da Bíblia, das várias culturas, adorava autores russos, ouvia canto gregoriano, tinha uma personalidade forte e uma capacidade de amar enorme. Era um ser humano excepcional, com uma sensibilidade, uma inteligência e uma profundidade intelectual como nunca conheci ninguém. Existia entre nós uma afectividade gigante e ele deu-me a capacidade de sonhar, de pensar, de ver e de criar. A minha mãe é mais "pés no chão", deu-me um espírito mais pragmático e a capacidade de executar. Sou uma combinação destes genes.
A morte do seu pai marcou um antes e um depois na sua vida, portanto.
Perdi o meu pai há sete anos, mas tive a felicidade de ele me morrer nas mãos. Tinha sido operado, estava nos cuidados intensivos, e nesse dia senti que ele estava à espera de mim para morrer. Dei-lhe a mão e disse: "Pai, pode ir embora que eu estou aqui." Passado pouco tempo as máquinas começaram a apitar e ele começou a ir embora. Eu sinto que entreguei o meu pai nas mãos de Deus. Foi uma honra ele ter morrido de mãos dadas comigo, senti-me honrado com isso. Foi, ao mesmo tempo, um momento de dor e de perda, mas também maravilhoso, em que o sentimento é ter entregue um pai que parte com a missão cumprida.
Quantos irmãos tem?
Éramos três. No ano a seguir perdi o meu irmão mais velho de forma trágica e isso foi uma grande violência. Foram duas mortes muito próximas. Não era suposto sentar-me à cabeceira da mesa com a minha mãe e, no espaço de um ano e um mês, passei de número três na hierarquia dos homens lá em casa para número um. Foi brutal.
Mudando radicalmente de assunto: há pouco sugeriu que não é rico, mas há quem ache que é muito rico...
[risos] Para mim, a utilidade marginal do dinheiro é negativa, este é um dos conceitos que tem pautado a minha vida de empresário: só tenho uma boca, o dia só tem 24 horas, as minhas filhas não comem mais bifes e, por isso, o dinheiro para mim é um tema que não aquece nem arrefece.
Isso é fácil de dizer quando não falta dinheiro...
Mas repare que já me faltou dinheiro. Já passei por isso. Vivi com muito pouco dinheiro quando tinha 16 anos e não era menos feliz por isso. Não passei fome, mas não havia dinheiro nenhum para gastos supérfluos.
Podemos considerar pouco dinheiro para a sua condição social, é isso?
Não, podemos considerar objectivamente pouco dinheiro. Mas gostava de retomar o conceito de utilidade marginal do dinheiro para dizer que a partir do momento em que se atinge um determinado conforto e qualidade de vida, isso não implica maior utilidade. Ou seja, passamos a fazer as coisas por um bem maior que não é o dinheiro e este passa a ser uma consequência.
A partir dessa margem de conforto qual é o critério?
A partir daí o jogo muda e é fantástico porque passamos a pensar não naquilo que me vai trazer mais dinheiro mas naquilo que me vai fazer feliz e sentir mais realizado. Isto, aplicado em termos empresariais, em projectos que me realizem, que acho bons e em que acredito. Projectos que permitam criar empregos e potenciar o desenvolvimento. Existe uma série de outros valores em que acreditamos e que se forem bem feitos podem criar imensa riqueza.
O que me está a dizer é que se sente livre para medir os seus lucros não apenas pelo dinheiro que ganha mas pela quantidade de postos de trabalho que cria e de projectos que sustenta? Essa é a lógica dos empreendedores sociais. Mas é também a sua?
Quando tudo isso é bem feito, o dinheiro vem como consequência. Por outras palavras, quando o critério é exclusivamente o dinheiro, tomam-se decisões muito mais de curto prazo. De outra forma conseguimos tomar mais decisões de médio e longo prazo. Conseguimos ir atrás de projectos menos prováveis mas com um valor intrínseco maior.
Não toma decisões em função do dinheiro?
Não tomo decisões com base na ideia de maximizar o dinheiro. Se tomasse as minhas decisões segundo esse critério, hoje não estaria onde estou.
Era mais rico?
Em Junho de 2007 era certamente mais rico, mas hoje até estaria provavelmente mais pobre.
Não teria conseguido atravessar a crise?
Se calhar na crise tinha-me magoado. Nunca teria feito o negócio da Orey, ter-me-ia focado muito mais na área financeira e a um nível institucional. Teria seguido de outra maneira, teria ganho mais dinheiro e até teria uma dimensão maior, mas se calhar nesta crise tinha apanhado forte e feio e poderia estar fora de jogo como alguns estão. A curto prazo teria ficado mais rico, mas agora poderia estar pior do que estou.
"Greed and fear" é uma lógica que reina no mundo das finanças em que as pessoas oscilam entre a ganância e o medo de arriscar. Como é que lida com esta amplitude de atitudes?
Medo, não tenho. Só temo a justiça divina. Ganância também não, na medida em que, como já disse, a utilidade marginal do dinheiro para mim é negativa. Tenho, por princípio, nunca fazer aos outros o que não gostava que me fizessem a mim. Essa é a minha ética nos negócios. Ser banqueiro não é apenas ter uma licença bancária, é ser confiável e também ser capaz de confiar. Quem não é capaz de confiar, não é confiável.
Enquanto banqueiro como lida com o descrédito que fatalmente vem associado ao caso Madoff e, noutra escala, aos casos nacionais?
Madoff não era banqueiro no sentido em que ele não confiava. Em teoria era confiável mas a sua prática provou o contrário. As pessoas confiavam nele mas ele não confiava em ninguém, na medida em que confiar é dar crédito. Ser confiável é receber depósitos. O banqueiro, no sentido estrito da palavra e no modelo clássico de banco, é alguém que, por um lado, é confiável para receber os depósitos das pessoas mas, depois, também é capaz de confiar nas pessoas para lhes dar crédito. Nesta lógica o verdadeiro banqueiro tem de saber confiar.
Como é que o cidadão comum sabe se este ou aquele banqueiro são realmente confiáveis?
A banca tradicional não foi tão afectada como a área financeira, nomeadamente os gestores de fundos como o Madoff. Na banca à antiga, digamos assim, a confiança não foi tão afectada, aliás os depósitos aumentaram significativamente nas instituições. No nosso modelo de negócio tentamos encontrar pessoas com talentos e confiar nelas, dando-lhes crédito e também capital. As pessoas percebem que se sabemos confiar é porque também somos confiáveis.
O que é que se imagina a fazer durante toda a vida?
Isto. Ser banqueiro, receber depósitos e dar crédito. Sempre quis ser banqueiro e sempre mexi com dinheiro.
Que outros talentos tem?
[pausa] Sou óptimo cozinheiro, posso ser skipper de barco, equitador, instrutor de esqui de neve, guia turístico, tradutor de inglês... [risos] Se Deus quiser nunca hei-de passar fome, porque sei fazer muitas coisas. A minha atitude é fazer tudo de forma honrada e andar sempre de cabeça erguida. Não tenho quaisquer problemas em fazer o que quer que seja
Quando cozinha, o que é que cozinha?
Um pouco de tudo. Entre o Natal e o Ano Novo faço sempre umas perdizes de escabeche e uns faisões com vinho tinto, que eu próprio caço. Mas também adoro bacalhau à Brás, bacalhau na brasa, migas à alentejana, enfim, gosto muito da cozinha portuguesa tradicional. Faço uma boa sopa de peixe.
Acha-se bonito?
Não me acho feio, mas também não me acho especialmente bonito [risos].
A imagem que os outros têm de si confere com aquilo que realmente é ou há margem de erro na leitura?
Acho que a leitura que fazem de mim é bastante diferente daquilo que sou. Há quem ache que sou muito frio, muito pragmático, arrogante, calculista e até um pouco agressivo, mas é uma leitura distorcida.
É a sua maneira de criar distância, de se proteger?
Não, eu não crio distância. Sei que tenho traços diferentes dos portugueses. Aqui sou diferente, mas na Suécia sou igual aos outros todos. Por outro lado, sou muito directo e frontal, olho as pessoas nos olhos, entro nos sítios e olho à minha volta, vejo o que se passa, quem está. Não olho com agressividade, simplesmente olho a direito, faço perguntas, gosto de ser frontal e isso pode ser confundido com provocação e arrogância. Não gosto de perder tempo nem de fazer ninguém perder tempo e vou directo aos assuntos. Por vezes, confundem firmeza com frieza.
O que é a felicidade para si?
É um percurso de liberdade positiva no sentido da liberdade interior que nos permite fazer escolhas independentemente das pressões sociais. Gostava de fazer uma volta ao mundo de barco à vela porque gosto muito do mar e ele dá-nos a verdadeira dimensão de quem somos. Gosto de me sentir pequeno e o mar dá-me isso. Uma coisa boa dos mercados financeiros é que nos dão humildade todos os dias e eu gosto disso.
I ONLINE
por Laurinda Alves, Publicado em 27 de Agosto de 2009